Sísifo[1], o mais astuto e inescrupuloso dos mortais, é filho de Éolo e, portanto, da raça de Deucalião. Autêntico fundador de Corinto, que até então se chamava Éfira, é, por vezes, considerado como sucessor do rei Corinto e seu vingador ou ainda sucessor de Medéia, de quem recebera o poder quando esta foi obrigada a deixar a cidade. O mito de Sísifo divide-se em três principais episódios, refletindo cada um deles um ardil deste embusteiro, que a Ilíada, VI, 152-155, chama de “o mais solerte dos mortais”.

1-Autólico, o maior larápio mítico da antigüidade e que fora instruído por Hermes na arte do perjúrio e do furto (Odiss., XIX, 392sqq.), havia roubado o rebanho do rei de Corinto. Sísifo, sem perda de tempo, conhecendo bem “o colega”, fez-lhe uma visita e identificou logo os bois que lhe haviam sido furtados, pois gravara o próprio nome sob o casco de cada um. A chegada do rei de Corinto coincidiu com a véspera do casamento de Anticléia, filha de Autólico, com o herói Laerte. Durante a noite, o esperto hóspede logrou tornar-se amante da noiva, que ficou grávida de Ulisses. Uma variante assegura que Autólico, desejando ter um neto com a astúcia de Sísifo, facilitou o encontro entre ambos.

2-Quando Zeus raptou Egina, filha do deus-rio Asopo, passou por Corinto e foi visto por Sísifo, que, em troca de uma fonte concedida pelo deus-rio, revelou-lhe a identidade do raptor. O pai dos deuses e dos homens imediatamente enviou-lhe Tânatos, mas o astuto rei de Corinto enleou a Morte de tal maneira, que conseguiu encadeá-la. Como não morresse mais ninguém e o rico e sombrio reino do Hades estivesse empobrecendo, a uma queixa de Plutão, Zeus interveio e libertou Tânatos, cuja primeira vítima foi exatamente Sísifo. O solerte filho de Éolo, todavia, antes de morrer pediu à mulher que não lhe prestasse as devidas honras fúnebres. Chegando ao Hades sem o “revestimento” ritual, isto é, sem a conformação de um eídolon, Plutão perguntou-lhe o motivo de tamanho sacrilégio. O rei culpou a esposa de impiedade e, à força de súplicas, conseguiu permissão para voltar rapidamente a fim de castigar severamente a companheira.

Uma vez em seu reino, Sísifo não mais se preocupou em cumprir a palavra empenhada e deixou-se ficar, vivendo até idade avançada. Um dia, porém, Tânatos veio buscá-lo em definitivo e os deuses o castigaram impiedosamente, condenando-o a rolar um bloco de pedra montanha acima. Mal chegando ao cume, o bloco rola montanha abaixo, puxado por seu próprio peso. Sísifo recomeça a tarefa, que há de durar para sempre, como está na Odisséia, XI, 593-600. Não existe punição mais cruel do que o trabalho inútil e sem esperança.

3-Como odiasse a seu irmão Salmoneu, indagou Sísifo ao Oráculo de Delfos como poderia eliminar “o inimigo”. Apolo respondeu que ele encontraria vingadores se conseguisse ter filhos com a sobrinha Tiro, filha de Salmoneu. Sísifo tornou-se amante da sobrinha e deu-lhe gêmeos. Tiro, tomando conhecimento do presságio da Pítia, eliminou os filhos ainda muito jovens.

Sísifo pode ser definido como o herói absurdo[2]; tanto por suas paixões, quanto por seu tormento. O desprezo pelos deuses, o ódio à morte e a paixão pela vida lhe valeram o suplício indescritível em que todo o ser se ocupa em não completar nada. É o preço a pagar pelas paixões deste mundo. Só existe um mundo; a felicidade e o absurdo são filhos da mesma terra; são inseparáveis.

Os mitos são feitos para que a imaginação os anime. Neste caso, vê-se apenas todo o esforço de um corpo estirado para levantar a pedra enorme, rolá-la e fazê-la subir uma encosta, tarefa infinitamente repetida. Vê-se o rosto crispado, a face colada à pedra, o socorro de uma espádua que recebe a massa recoberta de barro, e de um pé que a escora, a repetição na base do braço, a segurança toda humana de duas mãos cheias de terra. Ao final desse esforço imenso, medido pelo espaço sem céu e pelo tempo sem profundidade, o objetivo é atingido. Sísifo, então, vê a pedra desabar rapidamente para o mundo inferior, de onde será preciso reerguê-la até os cimos. E desce de novo para a planície.

A hora da descida é também a de respirar, em que aflora a consciência… Se a descida, assim, em certos dias se faz para a dor, ela também pode se fazer para a alegria. Não existe sol sem sombra, e é preciso conhecer a noite. O homem absurdo diz sim e seu esforço não acaba mais. Se há um destino pessoal, não há nenhuma destinação superior ou, pelo menos, só existe uma, que ele julga fatal e desprezível. A própria luta em direção aos cimos é suficiente para preencher um coração humano. É preciso ver Sísifo feliz!


[1] Algumas tradições atribuem ao rei de Corinto a fundação dos Jogos ístmicos em honra de seu sobrinho, Melicertes. Sísifo era casado com Mérope, a única das Plêiades que se uniu a um mortal. Dentre seus descendentes os mais célebres no mito são Glauco e Belerofonte.

[2] CAMUS, Albert. O Mito de Sísifo. Tradução de Mauro Gama. São Paulo: Record, 2004, p. 85-88.

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