Sim, um simples gesto pode transformar toda uma vida.

Dia de sol, vontade de caminhar no Parque do Flamengo, mas o senso do dever me chamava ao trabalho que, naquela manhã, consistia em examinar um Registro de Ocorrência na 10ª Delegacia Policial, em Botafogo.

O Detetive responsável me atendeu e, lá pelas tantas, perguntou se eu teria tempo de ver um preso, que chorava muito e insistia em que tinha sido jardineiro na “casa do seu Nilo”, referindo-se ao grande advogado e jurista Nilo Batista, em cujo escritório tive o privilégio de trabalhar e aprender.

A acusação era de porte de maconha. O local do fato, um canteiro de obras onde nosso personagem trabalhava.  O mestre de obras encontrara em seus pertences um invólucro contendo uma guimba de maconha. Vale lembrar que, ao tempo do fato, o porte de pequena quantidade para uso próprio era também punido com rigor. A PM foi acionada, nosso personagem preso em flagrante e levado à 10ª Delegacia Policial.

Acompanhei o Detetive. A simples visão do homem preso despertava dó. Triste, muito abatido, tez esverdeada, olhos opacos, nariz escorrendo…

                 Nilo deu o sinal verde para as providências. O juiz deferiu nosso pedido de liberdade mediante o pagamento de fiança. Sucedeu que, ao ser procedida a verificação de praxe, constatou-se que havia um processo antigo no Estado de São Paulo, também por porte de maconha. Tudo indicava ter sido alcançado pela prescrição. Nosso personagem escondera o fato temeroso de que não o ajudássemos. Perguntei quem havia feito sua defesa: “Doutor Trombone”… Um telefonema para o cartório esclareceu que o nome correto do colega era Otoboni, cujos préstimos viriam a ser fundamentais para a celeridade da diligência.

Resumindo, fui a São Paulo, voltei com a documentação necessária e, no dia seguinte pela manhã, ele estava livre. E eu, promovida por ele a “mãezinha de Deus”… só me chamaria assim daí em diante.

 Para fechar a diligência com um toque de leveza, assim que saímos da DP comprei-lhe umas peças de roupa e um kichute do qual ele não tirava os olhos. Roupa nova, vida nova e kichute no pé!

Restava uma providência. Ele não tinha onde ficar.

Este, aliás, é ainda um enorme desafio. Apesar da Política Nacional de Atenção às Pessoas Egressas do Sistema Prisional, e expedição, no Estado do Rio de Janeiro, da Cartilha do Egresso, falta vencer outro tipo de grade, difícil de romper – a do preconceito…

Voltando ao nosso herói, recorri ao Síndico do meu prédio, que bondosamente permitiu que ele ocupasse um quartinho ocioso lá.

Tudo estava indo bem até que, numa bela manhã, toca o interfone: um funcionário do prédio ia manobrar meu carro e meu protegido, que já traçara logo cedo uma dose de pinga, bradou: “no carro da mãezinha de Deus ninguém toca…” Assumiu o volante do meu carro, bateu em outro, e este outro no muro! Resultado: arquei com os custos do conserto do meu carro, mais os do vizinho e, é claro, o prejuízo do condomínio…

Era hora de partir.

Conseguiu encontrar uma instituição que acolhia pessoas sem teto. Durante algum tempo, alternou altos e baixos até conseguir melhor abrigo. Passa-se um bom tempo.

Um belo dia me aparece todo bonito, arrumado e animadíssimo, para se despedir. Ia voltar para Alagoas, sua terra natal. Havia se convertido a uma igreja protestante e mudara inteiramente sua vida. Como presente de agradecimento, trazia para nós um cesto de abacates.

Esse desfecho dificilmente teria sido possível, não fosse o gesto do atento e sensível Detetive que nos apresentou. Infelizmente – o tempo é implacável – não consigo lembrar seu nome, mas guardo a esperança de que, um dia, ele venha a tomar conhecimento de que seu gesto ajudou a salvar uma vida.

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