Em 2024, UERJ e EMERJ organizaram seminário em homenagem ao professor Nilo Batista, dedicado à discussão de seu vigoroso pensamento jurídico. Uma das principais construções intelectuais do professor – e um dos temas do seminário – é a firme negativa de um direito penal subjetivo, que encobre discursivamente o que, de fato, é o poder punitivo.
Não é questão nova no direito penal brasileiro, embora nem sempre abordada pelos nossos penalistas. Galdino Siqueira, em 1950, dizia que o conceito de direito subjetivo de punir deve ser repelido como coisa estranha ao direito penal, pois o que há é o supremo poder do Estado de infligir a pena[1]; também Aníbal Bruno, nos anos 1960, falava em um suposto direito penal subjetivo, defendia que o Estado tem um poder, e que reduzi-lo a um direito subjetivo falsifica a natureza dessa função.[2] Nilo Batista recupera a discussão sobre o direito penal subjetivo a partir de 1988[3].
A expressão direito penal é, frequentemente, usada em acepções diversas: (i) ora se fala queo direito penal não proíbe tal conduta: p. ex., o incesto; aqui, direito penal se refere à proibição legal (i.e., à legislação penal); (ii) ora se fala que o direito penal não estudou certa questão; p.ex., a cegueira deliberada; aqui, direito penal se refere ao discurso dos juristas (i.e., ao saber jurídico-penal); e (iii) por fim, ora se fala que o direito penal não pode resolver um problema: p. ex., a questão das drogas; aqui, direito penal se refere à atuação dos agentes do sistema penal (i.e., direito penal subjetivo ou poder punitivo).[4] Por isso, é impróprio o uso indiscriminado da expressão direito penal.
Não se trata de questão meramente terminológica; bem lembra Agamben que “a terminologia é o momento propriamente poético do pensamento, então as escolhas terminológicas nunca podem ser neutras”, pois essa escolha “implica numa tomada de posição quanto à natureza do fenômeno”.[5]
Alguns autores admitem um direito penal subjetivo, identificável, com dissensões, em três momentos: (i) primeiro, na faculdade do Estado de criar infrações penais e sanções penais; (ii) segundo, antes da prática do delito, na faculdade do Estado de exigir obediência dos súditos à lei penal existente; e (iii) terceiro, violada a norma penal, na faculdade do Estado de aplicar e executar as sanções penais.
A criação de normas penais é exercício estatal do poder de império, atributo da soberania estatal, dentro de parâmetros constitucionais, e não exercício de um direito.[6] Ainda que se discorde, existem mandados constitucionais de criminalização, a indicar que não é um direito de criminalizar, mas verdadeiro poder-dever. A ideia de direito penal subjetivo pode ser, por outro lado, eixo de uma concepção autoritária de Estado.[7] Mesmo Enrico Ferri, insuspeito de ser um amante da democracia, afirmava que é absurdo dizer que o Estado possa ter direitos, com base em normas jurídicas por ele mesmo criadas, porque, sob a suposta auto-atribuição de um direito[8], o que o Estado, na verdade, exerce é um poder que ele tem. O Estado nunca tem um direito puro, mas tem concomitantemente um dever: como é possível que uma prestação seja, ao mesmo tempo, direito e dever? Também não existe direito penal subjetivo porque não existe contraposto dever do súdito de se submeter à pena; Anibal Bruno já lecionava: o que existe é submissão do súdito ao poder do Estado. Por tudo isso, pode-se subscrever a frase de Nilo Batista de que a ideia de direito penal subjetivo é tecnicamente inútil e politicamente perigosa.
Interessante comparação pode ser feita entre direito penal e outros ramos do direito. Os tributaristas falam em poder de tributar e não em direito tributário subjetivo, e a própria Constituição Federal se refere às limitações ao poder de tributar. Isso acontece também com o direito disciplinar, exercido por corporações (p.ex., OAB, CRM, corregedorias etc.); ali se fala em poder disciplinar, e não em direito disciplinar subjetivo. Esses três ramos do direito têm similaridades: princípios limitadores semelhantes (como legalidade e anterioridade) e institutos parecidos (as infrações penais, tributárias e disciplinares são fragmentárias); isso ocorre porque todos esses ramos do direito resistem a um poder.
A expressão poder punitivo é, todavia, vulnerável a um risco degenerativo de cooptação, por duas frentes. Primeira frente: normalmente se definia o direito subjetivo como a faculdade de agir dentro do direito; hoje – e aqui recorro ao prestigiado professor Gustavo Tepedino – se define o direito subjetivo como atribuição de poderes ao titular de situação jurídica subjetiva para tutela do respectivo interesse.[9] Ou seja, hoje, a definição de direito subjetivo fala em atribuição de poder, e não em faculdade de agir, o que pode levar, por via transversa, a se repristinar a ideia de direito penal subjetivo. Segunda frente: o direito civil traz a noção de poder jurídico; valho-me, novamente, do professor Tepedino, que diz que poder jurídico é um poder exercido não no interesse do seu titular, mas altruisticamente no interesse da pessoa em cuja esfera jurídica ele se projeta. O paradigma é o poder familiar, exercido pelos pais em favor da criança.[10] Certamente, não é esse o sentido de poder punitivo, que não quer proteger as pessoas a ela submetidas. Lembrando Lima Barreto (“os protetores são os piores tiranos”), essa ideia causa calafrios: o poder punitivo viria altruisticamente proteger as pessoas sobre as quais se abate. A ciência penal já chegou a se atribuir essa capacidade, dizendo que a pena é um bem, que vem em benefício do apenado. O poder punitivo não é poder jurídico nessa acepção civilista, é poder de fato, poder de coação que pode, ou não, estar albergado pelo direito, sendo poder inconstitucional, ilegal ou anticonvencional. Poder jurídico é o que têm os juristas de deter ou de deixar passar poder punitivo.
É inegável a adequação da expressão poder punitivo. Primeiro, há correspondência com a realidade, porque efetivamente o poder que o Estado tem de impor pena não é mera faculdade ou direito subjetivo, é poder-dever. Em segundo lugar, há uma transcendência epistêmica e metódica; é diferente dizer que uma lei (ou uma pena) decorre do poder punitivo, e não do direito penal subjetivo. A ideia de direito requer ampliações e sugere analogias, já a ideia de poder requisita limite e controle.[11] Partir da ideia de que uma lei (ou uma pena) é ato de poder facilita a avaliação da sua legitimidade e necessidade, e não as presume. A noção de política criminal é afinada pela ideia de poder punitivo. A política criminal é a ciência política do poder punitivo[12], e não mera conselheira na luta contra a criminalidade. Essa noção de política criminal amplia a mirada e o espectro das questões político-criminais. E o objeto de estudo de todas as criminologias é o poder punitivo, pois todas elas afirmam saber algo sobre ele.[13]
A ideia de poder punitivo permite melhor compreensão da relação entre direito e qualquer ramo do conhecimento que tenha no poder um dos seus conceitos centrais (ciência política, filosofia política, sociologia, antropologia etc.). O estudo da ciência ou filosofia política revela propriedades do poder que elucidam questões penais; p. ex.: (i) o poder se exerce em relações dinâmicas e culturais de poder; por isso, o poder não é infenso a desigualdades. Daí se revela a seletividade do poder punitivo, e permite a busca por mitigar desigualdades, p.ex., a ideia de culpabilidade por vulnerabilidade; (ii) o poder não existe apenas no Estado, estando enfeixado em diversas relações sociais fora do Estado.[14] Daí constata-se, no âmbito penal, que órgãos não-estatais podem exercer poder punitivo (p.ex., imprensa ou órgãos internacionais não-estatais, que muitas vezes influenciam na criminalização), e também que há poder punitivo formal e informal[15]; (iii) o poder não se cinge à repressão; o poder também tem poder criador, de configurar a sociedade.[16] O poder não é só dizer não; o poder, frequentemente, está em configurar ativamente. Daí decorre a ideia de que o principal poder do sistema penal é o poder de vigiar ou de configurar positivamente a sociedade, e não o de punir; (iv) o poder pode ser gerado pela disseminação de sentimentos de medo no âmbito social.[17] A vontade de poder é uma consequência do medo.[18] A difusão de medos, sobretudo os irracionais, leva ao incremento de processos de criminalização, primária e secundária; (v) o poder está umbilicalmente ligado ao saber; eles se criam, se condicionam e se retroalimentam.[19] Daí decorre a ideia de que se deve sempre buscar, em cada teoria do direito penal, qual a intencionalidade política e o poder punitivo habilitado na prática; (iv) qualquer poder tende a se expandir.[20] Decorre daí a ideia de que o direito penal deve ser um poder jurídico, para conter poder punitivo inconstitucional, anticonvencional, ilegal e irracional.
De tudo isso se vê como é importante que se sedimente a ideia de que os penalistas e criminólogos lidamos com um poder estatal de punir, e não com um direito estatal de punir, se queremos compreender melhor a realidade e estar comprometidos com o Estado Democrático de Direito e com os direitos humanos.
[1] SIQUEIRA, Galdino, Tratado de direito Penal. vol. I, 2.ª ed. Rio: J. Konfino, 1950, p. 21.
[2] BRUNO, Aníbal, Direito Penal. tomo I. 3.ª ed. Rio: Forense, 1967, p. 20-22.
[3] Introdução crítica ao direito penal brasileiro, 12.ª ed. Rio: Revan, 2013, p. 48-9 e 103ss. Talvez influenciado pelos mestres anteriores e pela tradução de texto de S. Soler, “Conceito e objeto do direito penal”, in FRAGOSO, H. (dir.), RDP, n. 4, Rio, Borsoi, out./dez. 1971, p. 30ss.
[4] ZAFFARONI, E. R., Lineamientos de Derecho Penal, 1.ª reimpr., B. Aires, ed. Ediar, 2023, p. 36-7
[5] AGAMBEN, Giorgio, Estado de Exceção, ed. Boitempo, São Paulo, 2004, p. 15.
[6] FRAGOSO, Heleno, Lições de Direito Penal, Parte Geral, 6.ª ed., Forense, Rio, 1984, p. 4
[7] BATISTA, Introdução…, 2013, p. 106.
[8] FERRI, Enrico. Princípios de direito criminal, SP, Saraiva, 1931, p.115.
[9] TEPEDINO, G.; DONATO, M., Fundamentos do Direito Civil. v. 1. Rio: Gen-Forense, 2021, p. 103.
[10] TEPEDINO-DONATO, idem, 2021, p. 106.
[11] BATISTA, Nilo. Memorial, mimeo, p. 13, item 21.
[12] BATISTA, Nilo. “Poder punitivo e a magistratura”, in Rev. EMERJ, v. 23, n. 2, abr.-jun. 2021, p. 13.
[13] ZAFFARONI, E. R., Colonização punitiva e totalitarismo financeiro, ed. DaVinci, Rio, 2024, p. 17.
[14] FOUCAULT, Michel, Microfísica do poder. SP: Graal, 2003, p. 75 e 160.
[15] ZAFFARONI, Colonização…, 20024, p. 19-20.
[16] FOUCAULT, Michel, Microfísica…, 2003, p. 7-8.
[17] FERRERO, Guglielmo. O poder. Rio: Irmãos Pongetti, 1945.
[18] RUSSELL, Bertrand. A history of western philosophy, 1967, p. 767.
[19] FOUCAULT, Michel, Microfísica…, 2003, p. 12, 13, 142, 179-180.
[20] GALBRAITH, John Kenneth, The anatomy of power. Boston: Houghton Mifflin, 1983.