Dando início ao projeto de preservação da memória da advocacia criminal, o primeiro programa “A Prosa da SACERJ” entrevistou o advogado criminalista Alexandre Dumans, um dos fundadores e símbolo da SACERJ. Márcia Dinis e Renato Tonini conversaram com Dumans sobre a importância da criação da entidade para a defesa das garantias constitucionais e o combate ao punitivismo desmedido, e destacou como essa organização se tornou hoje a “maior representante dos advogados criminais, possivelmente na América do Sul”. A prosa foi além. Dumans falou de sua opção pela advocacia criminal, contou casos que marcaram sua carreira, e, comme il fallait s’y attendre, a prosa acabou em James Joyce e com declamação de I-Juca Pirama.
Alexandre Dumans contou que a criação da SACERJ foi uma reação diante do avanço de discursos que pretendiam promover o endurecimento penal e a relativização de direitos individuais. No início dos anos noventa, a SACERJ agregou alguns dos maiores advogados criminalistas e acabou se tornando um espaço de resistência jurídica e de promoção do debate qualificado sobre o sistema penal.
Após um período com as atividades adormecidas, a SACERJ ressurgiu no início dos anos 2010, e desde então tem seguido sua vocação para a defesa das liberdades e para a formação dos jovens advogados criminalistas. Como parte dessa missão, a associação criou inclusive um escritório modelo destinado à prestação de serviços jurídicos gratuitos, oferecendo assistência à população carente, mas que de forma alguma pretende concorrer com a Defensoria Pública.
Como ressaltado por Alexandre Dumans, uma das grandes finalidades do escritório modelo é não apenas a atuação pro bono, mas principalmente proporcionar experiência prática e capacitação para aqueles que querem exercer a advocacia criminal e não tiveram a oportunidade de estagiar num escritório especializado. Além da prática, o escritório modelo conta com um curso ministrado por advogados experientes, sempre tentando relacionar as aulas com as temáticas dos processos sob a responsabilidade dos novos profissionais que ingressam na advocacia criminal.
Ao longo de toda a entrevista foi reforçado o papel do advogado criminal, que precisa ter ao menos “um pouco de coragem” para conseguir confrontar as instituições repressivas: “Não precisa ter muita, mas se não tiver um pouco de coragem, pode ser engenheiro, astronauta, existem outras profissões maravilhosas, médico, por exemplo, mas não a advocacia criminal. Ela força você a se confrontar com instituições repressivas, Ministério Público, Polícia, Exército (…)”, “Então, você possuir uma profissão que faz com que você se confronte permanentemente com essas instituições repressivas, isso é uma situação em que qualquer covarde se rende, antes mesmo de começar”.
Daí a preocupação não apenas em fomentar o debate, mas também em investir na formação de novas gerações de advogados comprometidos com as garantias constitucionais, visando contribuir para a consolidação de uma justiça penal que respeite os direitos individuais.
Destacamos a seguir um trecho da prosa, mas a íntegra da Prosa da Sacerj nº 1 pode ser acessada logo abaixo ou no canal da SACERJ no YouTube em https://www.youtube.com/watch?v=jX6-SGjwvhg
– Renato Tonini:
Puxando o gancho da nossa história, da nossa história da SACERJ, eu queria que você nos contasse, porque você foi o grande, foi quem imaginou a SACERJ, foi você o inspirador da SACERJ, e isso eu estou falando dos anos 90, lá em 91, 92. Então eu queria que você contasse aí como é que você teve essa ideia da SACERJ, o que te provocou a entender necessária a criação da SACERJ e os bastidores aí, se for possível, da primeira diretoria da SACERJ.
– Alexandre Dumans:
Foi um negócio bastante imprevisto. Eu passava no fórum e eu vi um cartaz de um grupo de advogados que pretendia montar uma sociedade de advogados criminais no estado do Rio de Janeiro. E esse grupo de advogados era integrado por advogados que apoiavam a pena de morte, apoiavam o incremento do poder punitivo, queriam penas maiores.
E aquilo me deixou bastante assustado. Quando eu olhei aquele cartaz e vi aqueles advogados querendo montar uma sociedade de advogados, imediatamente eu saí para o escritório do ministro Evandro Lins de Silva, pedi a ele que assumisse a presidência da SACERJ e menti para ele dizendo que o Evaristo aceitaria a presidência da SACERJ desde que ele fosse o presidente, sem sequer ter falado com o Evaristo. O ministro perguntou para mim, mas o que eu tenho que fazer?
Eu falei, nada, ministro, nada. A finalidade dessa sociedade não é existir e atuar, é apenas anular a possibilidade dessa outra que pretende surgir. Ele falou, já que não é para fazer nada, eu aceito.
E o ministro aceitou, em seguida eu corri para o escritório do Evaristo e lá contei já, não uma mentira, uma verdade. E o Evaristo, por sua vez, ciente de que o ministro havia aceitado o encargo, ele também aceitou. Na sequência, eu dava aula nessa ocasião no curso de pós-graduação da PUC, onde as ideias fervilhavam, havia ali um grupo de alunos que representavam, na verdade, os expoentes da nova geração da advocacia criminal, ou seja, toda a nova geração da advocacia criminal estava ali, naquele curso.
E pedi apoio à doutora Márcia Dinis, ela incrementou ainda mais esse relacionamento que havia com o ministro, e juntos, e com o apoio desses alunos, que eram todos advogados já brilhantes, estavam apenas fazendo um aperfeiçoamento e representavam deveras a nata da advocacia criminal naquele momento. Todos eles colaboraram, de uma forma ou de outra, com o desenvolvimento, com a criação dessa SACERJ. Mas como o propósito dela não era fazer nada, ela, evidentemente, morreu.
Morreu e ficou moribunda durante um grande período, até que, com o surgimento de WhatsApp, desses negócios, dessas tecnologias, eu achei por bem reunir aquele grupo e a SACERJ foi… Ela ressurgiu, houve uma espécie de ressurreição, e nessa ressurreição a SACERJ veio com todo o vapor, não só trazendo a força daqueles jovens advogados, que já não eram tão jovens assim agora, mas agregando outros tantos advogados que os admirava. E isso fez com que a SACERJ se transformasse numa sociedade de advogados criminais bastante qualificada, para a qual comparecem Nilo Batista, Juarez Cirino, Juarez Tavares, na época, Fernando Fragoso, quando estava vivo, João Mestieri, Márcio Donnici, Carlos Eduardo Machado, enfim, tantos outros advogados renomados, Katia Tavares, Renato Tonini, Márcia Dinis.
E esse grupo conseguiu efetivamente se reunir e se transformou numa organização, eu diria, que hoje é a maior representante dos advogados criminais, possivelmente na América do Sul.
– Renato Tonini:
É sempre bom lembrar como é que isso tudo aconteceu, e, na verdade, o que motivou a SACERJ foi uma irresignação sua. Foi uma revolta. Foi mais uma injustiça que estava se desenhando, que você quis estancar e estancou.
– Marcia Dinis:
Eu até acrescentaria, Alexandre, que enquanto aquela sociedade que a gente encontrou no Fórum queria pena de morte, punições mais severas, nós chegamos com uma proposta completamente diferente, que era o antipunitivismo.
– Alexandre Dumans:
Isso é que efetivamente assustou, porque os doutrinadores, os doutrinadores de ponta, os doutrinadores de vanguarda, Nilo, Zaffaroni e tantos outros, sempre foram a favor da descriminalização, sempre adotaram posições semelhantes à do Luke Hillsman, do Neal Christ, no abolicionismo da pena. A direção era o contrário daquela. E, portanto, direcionar um grupo de advogados criminais para mais punição e recrudescimento era exatamente o oposto daquilo que toda a doutrina, nessa ocasião, como até hoje, mais ainda, pregava e prega.
Então, foi uma grande vitória, eu acho, sim. Uma grande vitória que foi reacendida no futuro, na sua ressurreição. E hoje é o que é.
– Renato Tonini:
A Fênix.
– Alexandre Dumans:
É, exatamente, a Fênix.
– Marcia Dinis:
Alexandre, a SACERJ também, hoje, continua empunhando a bandeira de buscar justiça social, de uma advocacia pro bono, muito por conta do que eu considero a sua menina dos olhos na SACERJ, que é o escritório modelo Nilo Batista.
– Alexandre Dumans:
Surge por conta da SACERJ. E ele consiste na atuação de aproximadamente trinta advogados, que são advogados voluntários, que trabalham pro bono para as pessoas sem recursos, para as pessoas que moram nas periferias, etc., que não tenham recursos. Nós não competimos com a Defensoria Pública.
A Defensoria Pública faz um trabalho grandioso. É um trabalho que envolve milhares e milhares de processos. O escritório modelo possui apenas cem processos, o que permite dar uma assistência com esses trinta advogados, uma assistência com uma excelência.
E, ao mesmo tempo, a gente forma novos advogados criminais, porque esse escritório modelo possui um curso de advocacia penal que é ministrado exatamente pelos advogados mais notáveis que hoje existem aqui na Praça do Rio de Janeiro. Esses advogados notáveis dão aulas de graça nesse curso, ou seja, não cobram nada, o que me permite ter um quadro docente um quadro docente da maior qualidade. E, ao mesmo tempo, esse curso trabalha questões que envolvem as causas que são defendidas pelo escritório modelo.
Então há uma união entre… A gente agrega, digamos assim, o conhecimento jurídico fornecido por esses advogados que praticam e que militam, são advogados atuantes, advogados todos conhecidos aqui no Rio de Janeiro e até mesmo no Brasil. Eles atuam como professores desse curso em pontos, em assuntos pontuais, em assuntos que estão relacionados com aquelas causas que são defendidas pelos advogados do escritório modelo.
Então, ao mesmo tempo que a gente forma advogados, que se tornam advogados especialistas em advocacia penal, a gente presta um serviço público de assistência gratuita para as pessoas que atuam na periferia. É realmente uma atividade nobre. Eu tenho, de fato, a menina dos olhos da minha vida hoje em dia, mas exige um trabalho contínuo muito penoso, muito difícil, e que tenho certeza de que a nova presidente da SACERJ vai saber conduzir com maestria”.