No início dos anos 80, ainda na graduação em Direito na Universidade Federal do Rio de Janeiro, surgiu uma oportunidade de estágio no escritório de Paulo Goldrajch, renomado advogado criminal e com forte atuação em outras áreas do Direito. Seria a minha segunda experiência, pois antes eu havia estagiado no escritório de Direito Falimentar do advogado Glicério Cruz, onde conheci o José Antônio Galvão de Carvalho, amigo e colega do Conselho Seccional da OAB.
No escritório do Paulo Goldrajch, comecei a entender o que era advocacia criminal e acabei me apaixonando por ela. Além do titular do escritório, tive a felicidade de lá aprender muito com outros colegas igualmente brilhantes, como o Paulo Ladeira de Carvalho, a Flora Strozenberg, o José Carlos Fragoso, e com a Enedir Adalberto dos Santos.
Nessa época, ainda morava na casa de meus pais no Leblon, na Zona Sul do Rio de Janeiro. Mas, o estágio tinha me proporcionado a oportunidade de conhecer muitos bairros distantes do centro, locais onde estavam sediadas várias delegacias, para atender as diversas demandas do escritório.
Certa madrugada, por volta das 5h da manhã, recebi um telefonema do Paulo Goldrajch, no qual ele não disfarçava a sua preocupação: “Renato, preciso que você faça um atendimento emergencial para um cliente. Ele está preso na 30ª Delegacia Policial, que fica em Marechal Hermes. A prisão se deve a um flagrante de receptação de um veículo roubado.”
Nesse momento surgiu um sentimento misto de satisfação e de apreensão, pois era a primeira vez em que faria sozinho um atendimento emergencial. Encarei a solicitação do Paulo como um desafio.
Registro que, naquela época, só existia linha telefônica fixa e a ideia de telefonia celular no Brasil, só era cogitada pela ficção científica.
Mas, surgiu um problema: eu não sabia onde ficava Marechal Hermes e tampouco como ir até lá. Perguntei ao Paulo se poderia chamar um táxi. A resposta foi um não, pois ele ainda não havia combinado os honorários com o cliente. Questionei, então, como iria até lá, visto que eu não dispunha de um carro naquela época. E ele respondeu: “Vá até a Central do Brasil e pegue um trem até Marechal Hermes”.
Perfeitamente, respondi. E lá fui eu, em direção à Central, para pegar a composição que me levaria ao encontro do cliente preso, na 30ª DP.
Nessa época, início dos anos 80, o Metrô do Rio de Janeiro tinha acabado de ser inaugurado, todo moderno, dispondo de um sistema sonoro que avisava quais seriam as próximas estações.
Imaginei que, na Central do Brasil, o método seria o mesmo. Ledo engano, não havia comunicação informando as paradas da composição. Assim, tive de prestar muita atenção para as placas existentes em cada uma das estações.
Depois de algum estresse, desci na estação certa e perguntei a um transeunte onde ficava a Delegacia. Após ser orientado me dirigi para lá, com bastante nervosismo, pois era uma área militar e ainda estávamos sob a ditadura.
Ao chegar na repartição, me identifiquei como estagiário e perguntei onde estava o meu assistido. No local, havia alguns repórteres e fotógrafos, de dois veículos de imprensa: “Jornal do Brasil” e “O Dia”.
Depois de ser identificado como advogado do preso, os profissionais da imprensa me pediram para fotografar o meu cliente. Como ainda não havia falado com ele, pedi que esperassem minha resposta.
Quando consegui me entrevistar reservadamente com o preso, o instruí para ficar em silêncio e nada responder. Na sequência, disse a ele que a prisão havia chamado a atenção da imprensa e que os repórteres queriam tirar fotos dele. O cliente acatou a minha sugestão, mas me disse que não queria ser fotografado, com a justificativa de que poderia ser identificado por outras vítimas de sua atividade criminosa.
Com isso, me dirigi aos jornalistas para comunicar que a captação de imagens do cliente não estava autorizada. A decisão gerou a revolta dos repórteres, aumentando ainda mais a gana de fotografar o cidadão.
Como o cartório onde ele seria ouvido ficava no segundo andar da delegacia e o setor de identificação ficava no térreo, o cliente era obrigado a se deslocar de um lugar para o outro. Assim, no trajeto entre uma e outra sala da repartição pública, os fotógrafos tentavam obter imagens do detento. Mas não conseguiam, pois toda vez que eles direcionavam o foco para ele, eu colocava um jornal na frente das lentes e impedia que a foto fosse tirada.
Isso aconteceu várias vezes, durante todo aquele dia, com repetidos embates entre os fotógrafos e eu. Durante esse conflito, eu fui fotografado muitas vezes, especialmente no espaço onde estava instalado o setor de identificação.
As formalidades da prisão em flagrante só terminaram no final daquele dia, não tendo sido arbitrada a fiança para o cliente. Tudo era datilografado e muito demorado, pois, na época, a informática ainda dava os seus primeiros passos e apenas grandes empresas, universidades e alguns poucos órgãos de governo federal dispunham dessa tecnologia. A Internet não existia no Brasil, pois só chegaria ao nosso país no final da década de 80, ainda de modo muito restrito.
Por conta disso, só seria possível postular algo em favor do cliente no dia seguinte, depois de realizada a distribuição do auto de prisão em flagrante.
Concluídos os trabalhos da defesa, voltei direto para casa e só então liguei para Paulo Goldrajch, relatando o que havia acontecido. Na conversa, ele elogiou o meu trabalho e concordou com a minha atuação. Concluiu dizendo que, provavelmente, no dia seguinte a imprensa iria noticiar o acontecido com a menção ao meu nome.
Isso me deixou muito envaidecido, pois aquela seria a primeira vez que um órgão da imprensa citaria o meu nome.
No dia seguinte, acordei ansioso para ver o meu nome no jornal. Fui até a banca na esquina de casa e comprei um exemplar do jornal “O Dia” e outro do “Jornal do Brasil”. Comecei a folhear os dois matutinos lá mesmo. No “O Dia” havia uma pequena notícia dando conta da prisão do cliente, sem mencionar o meu nome. O meu interesse estava mesmo na notícia que seria publicada pelo “Jornal do Brasil”, muito conceituado à época, e lido por várias pessoas do meu círculo de amizades.
Ainda na banca de jornais eu localizei a matéria publicada pelo JB. Lá estava uma foto minha, ocupando um espaço significativo na página, na qual aparecia a minha imagem de corpo inteiro, de óculos escuros, com as mãos para trás e a seguinte legenda: “Advogado é preso ao tentar corromper policiais militares”. Parecia que eu tinha sido algemado …
Naquele momento eu desabei. Fiquei boquiaberto e logo começaram a descer as lágrimas de raiva, de revolta e de decepção. – Como eu havia sido preso se eu estava na rua?
Voltei para casa, nervosíssimo, me troquei e fui para o escritório para conversar com o Paulo Goldrajch. Lá chegando, disse ao Paulo que iria processar o editor do “Jornal do Brasil”, já que, por não ser matéria assinada, o responsável penal pelo seu conteúdo era o editor do jornal, segundo dispunha a Lei de Imprensa vigente naquela ocasião.
Apesar de apoiar a minha reação, Paulo Goldrajch indicou a Flora Strozenberg para propor a queixa contra o editor do jornal. A explicação para o seu escritório não assumir a questão era que o Paulo também era jornalista e, por essa razão, não se sentiria bem em processar outro colega.
Não tive saída, senão acatar a decisão do titular do escritório e a queixa foi proposta contra o editor do “Jornal do Brasil”, assinada pela Flora. Eu mesmo elaborei a queixa e recebi uma onda de solidariedade de amigos, de colegas e de gente que me conhecia muito pouco.
Dentre essas pessoas que me ajudaram, destaco o advogado José Carlos Tórtima pela solidariedade que ele manifestou para mim, mas sobretudo por ter me emprestado gentilmente uma das únicas obras que tratavam dos crimes de imprensa, escrita por Darcy Arruda de Miranda, edição totalmente esgotada na época.
Também foi proposta uma ação de reparação de danos contra o “Jornal do Brasil”, na qual fui representado pelo advogado civilista Antônio Carlos de Carvalho, grande amigo do Paulo e frequentador do escritório dele.
As ações foram propostas, recebidas e processadas. No entanto, não foi proferida sentença de mérito em nenhum dos casos. É que foi celebrado um acordo abrangente, que incluiu uma espécie de desagravo em meu favor, publicado no Informe JB, uma coluna muito lida e de grande repercussão, além do recebimento de um valor que, à época, seria suficiente para comprar o carro brasileiro mais cobiçado: o Passat TS. Apesar da tentação, não comprei o veículo. Comprei duas linhas telefônicas, algo raro, cobiçado e caríssimo naquela época, e guardei o resto do dinheiro. E assim terminaram as demandas: com a minha honra reparada e uma boa grana no bolso. Passados mais de quarenta anos, tenho a convicção de que fiz a coisa certa. Defendi os interesses do cliente, sem me importar com as consequências que poderiam surgir. Certamente, com a experiência que reuni nesses anos todos, o meu comportamento seria mais ponderado, sem um confronto aberto. O advogado também tem de saber lidar com a imprensa, do mesmo modo como tem de saber se relacionar com juízes, promotores de Justiça e delegados, mas sempre atuando com destemor, independência, honestidade, decoro, veracidade, lealdade, dignidade e boa-fé, como prescreve o Código de Ética.