O fatídico episódio de Guadalupe, na tarde do penúltimo domingo, dia 7 de abril, resultou na morte do trabalhador Evaldo dos Santos e em três feridos, dois deles gravemente. Enquanto Sergio de Araújo, sogro de Evaldo, recupera-se bem das lesões sofridas, já tendo recebido alta hospitalar, o catador de papéis Luciano Macedo, também baleado ao tentar socorrer a família metralhada, permanece em coma, correndo risco de morte. Já a terceira vítima, a democracia brasileira, atingida por todos os oitenta e três disparos dos militares, convalesce dolorosamente das gravíssimas lesões sofridas, sendo incertas as chances de sua sobrevivência. Esta dependerá, fundamentalmente, do tratamento a ser dispensado à trágica ocorrência, não só na Justiça, encarregada da punição dos executores e responsáveis diretos pelo crime, após o devido processo legal, mas também, e, sobretudo, junto às instituições que tinham e têm o dever de evitar que esse clamoroso atentado aos Direitos Humanos e ao Estado Democrático de Direito tivesse jamais ocorrido, e não volte a se repetir. E nessa ordem de ideias, apresenta-se como preocupante o posicionamento ambíguo, para dizer o mínimo, do Comando Militar do Leste, diante da abominável conduta da tropa responsável pela sumária e gratuita execução daquele pai de família diante da mulher e filho, que levava para um chá de bebê. Inicialmente, e sem amparo em qualquer dado confiável, a nota oficial da Força alegava que os militares haviam se defendido de “injusta agressão” por parte dos ocupantes do veículo alvejado. Depois, numa segunda nota, evitou admitir o malfeito de seus subordinados, mesmo diante das gritantes evidências desse grosseiro equívoco, dizendo apenas que os fatos estavam em apuração. Finalmente, uma terceira nota admitia o erro dos soldados, atribuindo-o a uma “violação de normas de engajamento”, o que no jargão militar significa uso inadequado da força. Nem uma palavra mais enérgica de repulsa à ação criminosa do oficial e seus comandados, envolvidos no covarde atentado às vidas de pessoas inocentes, ou de solidariedade às suas famílias ou ainda de desculpas à sociedade ultrajada no nefasto episódio de gratuita violência.
Não se venha aqui a falar de um mero erro operacional, como são exemplos conhecidos os chamados danos colaterais, evitáveis embora involuntários, quando vítimas inocentes são atingidas em operações policiais – ou de guerra – que têm como alvo, respectivamente, criminosos armados ou tropa adversária. Não é esse o caso em discussão, primeiro porque não se pode cogitar de erro operacional se os responsáveis pelo abate de inocentes não participavam de operação regular de combate. Afinal, os militares, agora presos, não estavam em missão e agiram numa via pública, fora do período da intervenção militar, finda em dezembro, contra civis desarmados e inocentes. Demais disso, soa como ridícula a alegação de que os soldados atiraram porque teriam confundido, em plena luz do dia, o carro com o de assaltantes, com quem teriam trocado tiros horas antes. Na verdade eles continuaram a atirar, segundo testemunhas, mesmo depois que a mulher da vítima fatal saiu de dentro do carro, acompanhada de uma criança e de uma adolescente, para fugir dos tiros que já tinham atingido Evaldo e Sergio. E na sequencia ainda balearam com vários tiros o corajoso Luciano que se aproximou do veículo para socorrer as vítimas, o que só reforça a certeza de que sabiam não serem bandidos armados os ocupantes do carro. Não contentes, os soldados ainda debocharam sadicamente do pedido de socorro a eles dirigidos pela mulher de Evaldo, Luciana dos Santos.
Não deixa de ter razão o Presidente Bolsonaro, quando afirmou que o Exército não matou ninguém, e que o Exército é do povo, e, portanto, não é assassino. A mesma opinião tinha Evaldo, a vítima fatal, tanto que suas últimas palavras foram de espanto com a conduta dos soldados: “Por que o quartel está fazendo isto?”, indagou antes de cair morto.
Exatamente por isto, é que se poderia esperar do Presidente e dos comandantes do Exército, e demais altas autoridades do País, uma condenação dura e veemente desse desvio de conduta, que destroçou duas humildes famílias de brasileiros, manchou a imagem da instituição militar, e feriu gravemente os Direitos Humanos, a própria liberdade de ir e vir, e, portanto, o Estado Democrático de Direito em nosso país. E ainda o compromisso da adoção de sérias medidas para que atentados como este à Democracia não voltem a ocorrer.
Por tais motivos, a Sociedade dos Advogados Criminais do Rio de Janeiro repudia o cruel atentado e aguarda que as autoridades competentes, no curto período de tempo que a hipótese está a reclamar, respeitadas todas as garantias constitucionais dos militares envolvidos, emitam os esclarecimentos que, até agora, não foram prestados às sociedades brasileira e internacional.
ALEXANDRE MOURA DUMANS
Presidente
JOSÉ CARLOS TÓRTIMA
Membro do Conselho Consultivo