I. Introdução
A explosão do número de demandas nas últimas décadas tem imposto aos atores do sistema de justiça criminal a busca por soluções a fim de dar vazão aos casos em trâmite perante os Tribunais.
É nesse contexto que diversas soluções têm sido propostas e efetivadas, a exemplo da ampliação de mecanismos processuais consensuais, utilização de novas tecnologias e inteligência artificial no auxílio aos magistrados, ampliação do número de juízes e assessores nos Tribunais, estabelecimento de filtros processuais cada vez mais rigorosos de admissibilidade recursal nos tribunais superiores, assim como a recente tentativa de redução das sustentações orais em forma síncrona e presencial.
A garantia constitucional da duração razoável do processo (art. 5º, LXXVIII, da CR/88) impõe que as demandas sejam solucionadas de forma definitiva, pelo Poder Judiciário, dentro de um prazo adequado, vedando-se a eternização dos casos sem solução definitiva. A distribuição da justiça em prazo exíguo é tão nociva quanto aquela que ocorre em prazo extremamente elástico.
Logo, refletir sobre saídas para desafogar o Poder Judiciário e evitar que as demandas se eternizem nos Tribunais é medida não apenas salutar como necessária. Por outro lado, a pretexto de se conferir agilidade na solução dos casos concreto, não é admissível que sejam atropelados os direitos e garantias processuais das partes.
Neste contexto, tem-se identificado, ultimamente, um movimento dos Tribunais Superiores – seja através da atuação do CNJ ou ainda mediante alterações nos Regimentos Internos – no sentido da redução das hipóteses de sustentação oral pelos advogados, ou mesmo de flexibilização dessa importante atividade processual, através da substituição das sustentações orais síncronas e em tempo real, pela disponibilização nos autos do processo de mídia gravada contendo a apresentação do caso oralmente pelo advogado, para suposta consulta desta gravação pelos magistrados que irão realizar o julgamento.
No caso do processo penal, essa medida é não apenas contrária à lógica de um modelo acusatório e democrático, como igualmente retira o único resquício de oralidade que remanesce no âmbito dos Tribunais, suprimindo imprescindível mecanismo de produção de conhecimento e convencimento dialógico perante as cortes de apelação e Tribunais Superiores.
Mais do que isto, qualquer advogado ou advogada, defensor ou defensora pública, com um mínimo de experiência perante os Tribunais, sabe que uma sustentação oral realizada de forma técnica pode mudar o resultado de um caso concreto, não apenas pela apresentação das teses jurídicas a partir de uma perspectiva diversa daquela escrita[1], mas também por uma certa humanização da relação processual, possível pela maior interação entre quem realiza a sustentação oral e os integrantes do quórum de julgamento.
II. A importância da sustentação oral nos Tribunais
A oralidade avulta como característica essencial de modelos processuais penais acusatórios, pois “um processo penal que privilegia a oralidade permit[e] concretizar o princípio acusatório e auxiliar na superação da cultura inquisitória”[2].
Assim, deve-se promover uma “vinculação da oralidade como metodologia para a concretização do princípio acusatório vinculado a uma estrutura adversarial”[3], pensando-o como “uma técnica de efetivação e maximização das garantias processuais”[4] fundamentais dos investigados e acusados.
Sem pretensão de ofertar, nos limites do texto, uma definição de oralidade[5], fato é que esta forma de realização de atos processuais tem sido pensada sobremaneira como técnica de produção de conhecimento em audiência, orientada segundo princípios de concentração, imediação e identidade física do juiz[6].
No modelo de audiências eminentemente orais – via de regra em um sistema de duplo juiz (ou “juiz das garantias”, na forma do art. 3º-A a 3º-F, do CPP, com redação dada pela Lei n. 13.964/19) –, os magistrados decidem o caso penal essencialmente a partir dos atos de prova produzido pelas partes (acusação e defesa), de forma dialética e dialógica, no ambiente publicístico do processo, tendo pouco ou nenhum contato com os atos de investigação[7].
A concepção de oralidade vinculada essencial e tradicionalmente à audiência de instrução e julgamento – o que no Brasil representaria um avanço, pois nem mesmo após as reformas parciais promovidas pela Lei n. 11.719/08 se conseguiu conferir adequada eficácia aos arts. 400, caput e § 1º, c.c. art. 403, ambos do CPP – deve ser ampliada, projetando-se mecanismos efetivos de oralidade para as fases de investigação preliminar, postulatória, instrutória, decisória, recursal, audiência de custódia e até mesmo ao processo de execução penal.
Em suma, deve-se estruturar “o processo por meio da oralidade, inserindo-a em todas as fases processuais, incluindo as decisões cautelares na fase preliminar, os recursos às instâncias do duplo grau de jurisdição e atos da fase de execução penal, teremos maior efetividade do contraditório”[8].
No caso dos recursos, a singela garantia de que os advogados e defensores públicos possam realizar sustentações orais na sessão de julgamento – quando a práxis evidencia que os votos dos magistrados integrantes do quórum são previamente confeccionados e compartilhados entre eles – é insuficiente para que se possa falar, na sua máxima extensão, em oralidade na fase recursal[9].
Mas ainda que mínima, a sustentação oral segue sendo uma garantia de aproximação da advocacia pública e privada para com os Tribunais – em alguns casos possibilitando a influência e até a modificação de decisões previamente construídas – e de humanização do ato de julgar em sede recursal.
Recentemente, porém, tem-se evidenciado um movimento de flexibilização ou mesmo eliminação das sustentações orais nos Tribunais. Com efeito, o Conselho Nacional de Justiça, através da Resolução sob n. 591/2024, a pretexto de regulamentar as sessões virtuais realizadas pelos Tribunais, autorizou que o relator possa submeter os julgamentos a sessões assíncronas,
“acaba[ndo] com a intervenção oral das partes no órgão colegiado, imediata e síncrona, determinando que seja gravado em vídeo e juntado na sessão virtual, até 48 horas antes do início do julgamento. Além disso, impede que as partes requisitem a remessa para sessão presencial, deixando o destaque de julgamento ao alvedrio do relator.”[10]
Como parece sintomático,
“esse movimento coloca o País na contramão das reformas processuais que, fundadas em constituições democráticas, consideram que o julgamento oral e público – que inclui sustentação oral síncrona e aposta no contato imediato com os julgadores – constitui um eixo fundamental da estruturação política e técnica do sistema de justiça republicano”[11].
O que se espera, portanto, é que em futuro próximo, sejam as sustentações orais virtuais assíncronas uma página rapidamente virada nos anais da justiça brasileira, dado caminharem na contramão do processo penal democrático, dialético e acusatório.
III. Referências
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. A oralidade no novo processo penal acusatório brasileiro: o ensinamento uruguaio. In: PAULA, Leonardo Costa de (Coord.). Reflexiones brasileñas sobre la reforma procesal penal en Uruguay. Santiago: CEJA, 2019, p. 101-110.
DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Processual Penal. reimp. da 1ª ed. Coimbra: Almedina, 2004.
GALÍCIA, Caíque Ribeiro; VASCONCELLOS, Vinicius Gomes de. O esvaziamento do direito ao recurso na prática brasileira: devido processo penal na América Latina e respeito à oralidade e à publicidade no juízo recursal. In: GONZÁLEZ, Leonel (Org.). Desafiando a Inquisição: ideias e propostas para a reforma processual penal no Brasil. Santiago: CEJA, 2017, p. 167-181.
GOLDSCHMIDT, James. Principios Generales del Proceso II (problemas jurídicos y políticos del proceso penal). Buenos Aires: EJEA, 1961.
IBCCRIM. Cassada a palavra! Como o fim da sustentação oral promete debilitar ainda mais o acesso à justiça no Brasil. Boletim do IBCCRIM. São Paulo, v. 33, n. 388, p. 2-3.
MINAGÉ, Thiago M. Prisões e Medidas Cautelares à Luz da Constituição. 6ª ed. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2024.
MORAIS, Flaviane de Magalhães Barros Bolzan de. Editorial dossiê ‘Oralidade e garantias processuais penais’: de que oralidade podemos falar? Revista Brasileira de Direito Processual Penal. Porto Alegre, v. 3, n. 3 (set.-dez./2017), p. 809-823.
MOREIRA, Romulo de Andrade. A oralidade e o sistema de audiências – uma proposta para o Brasil a partir da experiência chilena. In: GONZÁLEZ, Leonel (Org.). Desafiando a Inquisição: ideias e propostas para a reforma processual penal no Brasil. Santiago: CEJA, 2017, p. 183-203.
[1] A distinção entre “linguagem falada” e “linguagem escrita” no processo penal é ressaltada, por exemplo, em: MINAGÉ, Thiago M. Prisões e Medidas Cautelares à Luz da Constituição. 6ª ed. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2024, p. 169 e ss.
[2] MORAIS, Flaviane de Magalhães Barros Bolzan de. Editorial dossiê ‘Oralidade e garantias processuais penais’: de que oralidade podemos falar? Revista Brasileira de Direito Processual Penal. Porto Alegre, v. 3, n. 3 (set.-dez./2017), p. 820. No mesmo sentido, cf.: DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Processual Penal. reimp. da 1ª ed. Coimbra: Almedina, 2004, p. 229; GOLDSCHMIDT, James. Principios Generales del Proceso II (problemas jurídicos y políticos del proceso penal). Buenos Aires: EJEA, 1961, p. 138-139.
[3] MORAIS, F. M. B. B. Editorial … op. cit., p. 815.
[4] Idem, ibidem, p. 815.
[5] James Goldschmidt vincula a oralidade ao método de produção do conhecimento direcionado ao acertamento do caso penal: “se entiende por oralidad del procedimiento el principio de que la resolución judicial puede basarse sólo en el material procesal proferido oralmente” (GOLDSCHMIDT, J. Principios … op. cit., p. 138. Jorge de Figueiredo Dias adverte que a oralidade não se reduz à realização de atos processuais sob a forma oral – “mesmo no processo mais encarniçadamente inquisitório não faltavam decerto actos processuais orais” –, mesmo porque a adoção da oralidade “não significa exclusão da escrita”, inclusive para fins de registro daquilo que foi produzido nos autos do processo (FIGUEIREDO DIAS, J. Direito … op. cit., p. 229-230). A necessidade de escrituração, mesmo em modelos processuais acusatórios, impõe-se inclusive para que se permita a realização de controle dos atos processuais produzidos: “doutra parte, se se faz necessário o controle, parece evidente que se não deve permitir (…) a proibição [absoluta] da escrituração” (COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. A oralidade no novo processo penal acusatório brasileiro: o ensinamento uruguaio. In: PAULA, Leonardo Costa de (Coord.). Reflexiones brasileñas sobre la reforma procesal penal en Uruguay. Santiago: CEJA, 2019, p. 104).
[6] GOLDSCHMIDT, J. Principios … op. cit., p. 138-155; FIGUEIREDO DIAS, J. Direito … op. cit., p. 232.
[7] Para Figueiredo Dias, “quando se fala da oralidade como princípio geral do processo penal tem-se pois em vista (…) a forma oral de atingir a decisão: o processo será (…) dominado pelo princípio da oralidade quando a decisão é proferida com base em uma audiência de discussão oral da matéria a considerar.” (DIAS, J. F. Direito … op. cit., p. 231-232).
[8] MORAIS, F. M. B. B. Editorial … op. cit., p. 820.
[9] GALÍCIA, Caíque Ribeiro; VASCONCELLOS, Vinicius Gomes de. O esvaziamento do direito ao recurso na prática brasileira: devido processo penal na América Latina e respeito à oralidade e à publicidade no juízo recursal. In: GONZÁLEZ, Leonel (Org.). Desafiando a Inquisição: ideias e propostas para a reforma processual penal no Brasil. Santiago: CEJA, 2017, p. 174: “em essência, o procedimento nos tribunais é escrito. O único momento de exercício efetivo de oralidade é na “sustentação oral” dos advogados das partes, que podem apresentar argumentos por 10 minutos. Na prática, a efetividade desse ato é fragilizada em razão de o julgador já ter seu voto pronto antes do início da sessão de julgamento, de modo que as alegações orais das partes pouco influenciam a decisão tomada. (…) Assim, inviabiliza-se por completo o respeito à oralidade, à publicidade, ao direito de defesa e ao contraditório em âmbito impugnativo”. Em crítica análoga, cf.: MOREIRA, Romulo de Andrade. A oralidade e o sistema de audiências – uma proposta para o Brasil a partir da experiência chilena. In: GONZÁLEZ, L. Desafiando … op. cit., p. 199.
[10] IBCCRIM. Cassada a palavra! Como o fim da sustentação oral promete debilitar ainda mais o acesso à justiça no Brasil. Boletim do IBCCRIM. São Paulo, v. 33, n. 388, p. 2.
[11] Idem, ibidem, p. 3.