Aquecimento acelerado do planeta intensificado pelo efeito estufa decorrente das escolhas humanas em prol do desenvolvimento. Os impactos ambientais dessas decisões já apresentam altos custos inadiáveis. Eventos climáticos extremos em 2024 demonstraram que a crise climática já faz parte do nosso cotidiano. Ondas de calor intensas e aflitivas, seca histórica do Rio Negro, chuvas ameaçadoras, enchentes, incêndios florestais e crises respiratórias afetam populações. Nesse panorama a expressão ‘Blockchain do Clima e do Encarceramento’ pode parecer uma metáfora distante da realidade carcerária. No entanto, ao associá-lo à ideia de registros imutáveis e interligados, destaca-se como a relação entre crises climáticas e o sistema penitenciário é mal documentada e pouco discutida. Tal como o blockchain registra transações em uma rede descentralizada de forma permanente, a interação entre mudanças climáticas e condições carcerárias é, frequentemente, ignorada ou ausente dos registros oficiais e políticas públicas.
2. A Crise Climática e o Sistema Prisional Brasileiro
A população carcerária está exposta a diversos fatores que ultrapassam o cerceamento da liberdade. Uma invisibilização estrutural cujos fatores se sobrepõem e reforçam uns aos outros. Em períodos de crises sanitárias, econômicas ou ambientais, os grupos hipervunerabilizados são os mais afetados, senão os primeiros. É uma demonstração de que a crise climática não afeta a todos de forma igualitária. Marcados por desigualdades históricas relacionadas à pobreza, gênero, racismo e falta de acesso a serviços básicos, presos/as sofrem ainda mais durante crises climáticas. Essa realidade expõe a falha estrutural do sistema prisional, que, além de negligenciar a saúde e segurança nas prisões, também contribui para a intensificação dos efeitos da mudança climática. Nas engrenagens invisíveis, o agravamento de doenças infecciosas historicamente negligenciadas pode se intensificar com a umidade dentro das prisões. Enquanto parte da sociedade extramuros tem acesso a avisos de tempestades, ondas de calor e incêndios florestais, presos/as podem carecer de informações qualificadas, o que não é um erro administrativo. Decodificando este mecanismo, trata-se de uma violência institucional camuflada de omissão – não informar é um mecanismo de punição silencioso. Fato é que há poucos estudos específicos sobre essa relação, muitos desses impactos ainda não são devidamente considerados nas políticas de mitigação e adaptação.
As consequências diretas e imediatas dessa falta de visibilidade já são conhecidas. Um exemplo concreto ocorreu no Complexo Penitenciário de Gericinó, em Bangu, Rio de Janeiro, em janeiro de 2017. Uma falha no abastecimento de água, com temperaturas acima de 40°C, agravou as condições já precarizadas dos detentos, tensionando os conflitos internos e levando à transferência de presos para prevenir rebeliões[1]. A falta de água, acentuada pelo aumento de consumo devido ao calor intenso, gerou condições insalubres, conforme relatado pelos próprios internos. Este episódio evidencia desafios de hoje e perspectivas de ontem. Diante do déficit de registos da invisibilização das intersecções entre a crise climática e o encarceramento, é fundamental refletir os mecanismos que assegurem transparência e responsabilização. A metáfora do blockchain destaca a necessidade de registros confiáveis e disponíveis para a percepção e enfrentamento dos desafios ambientais que multiplicam a vulnerabilidade carcerária.
3. Justiça Climática e a População Carcerária
A justiça climática busca combater as desigualdades sociais, raciais, de gênero e econômicas no contexto dos impactos ambientais. Estudos apontam que o aumento da temperatura pode impactar a saúde de maneira desproporcional. Pesquisa realizada na Califórnia por Bekkar et al. (2020) demonstrou que um aumento de 10°C pode elevar em 8,6% a incidência de partos prematuros, percentual que quase dobra para mulheres negras. De acordo com o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (INFOPEN) de dezembro de 2022, publicado pelo Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), o Brasil possuía aproximadamente 832 mil pessoas em situação de privação de liberdade. Este número insere o país entre aqueles que possuem as maiores populações carcerárias do mundo. As condições precárias potencializam a vulnerabilidade climática, conforme destacado por Magalhães e Vasconcellos (2021), que apontam o superaquecimento em celas superlotadas como um fator agravante para a saúde dos detentos/as. Sem esgotar o tema, essas questões se refletem no Plano Nacional de Política Criminal e Penitenciária (2020-2023) que não menciona estratégias para enfrentar os impactos da crise climática.
4. Sobrevivência Climática-Prisional no Brasil – da Amazônia até a Baixada Fluminense
“O Norte é muita coisa, nós somos os povos da Amazônia.” A frase de uma graduanda amazonense posiciona a complexidade sociocultural e ambiental da região. Com aproximadamente 18% do território nacional se caracteriza por uma geografia singular, onde rios são, na maior parte do tempo, estradas para os deslocamentos de familiares que visitam as pessoas em unidades prisionais isoladas (ALMEIDA, 2019) e barcos são o principal meio de transporte. Apesar de serem historicamente os menos implicados pelas emissões de gases de efeito estufa, os povos amazônicos estão entre os mais vulneráveis aos impactos das mudanças climáticas (BARROS & COSTA, 2021).
Essa realidade, que parece distante, revela uma tensão latente sobre o tema e expõe a falta de uma reflexão específica sobre a justiça climática em nosso panorama geral e principalmente local. A interseção entre crise climática e encarceramento se expande para muito além da Amazônia. Na Baixada Fluminense um sentenciado ao regime semiaberto, utilizando monitoramento eletrônico, que já enfrenta falta de estrutura eficiente e falhas técnicas, experimentou como a vulnerabilidade climática se sobrepõe a condições já precarizadas de vida e mobilidade (SANTOS & LIMA, 2022). O atravessar de uma enchente, já complexo, causou-lhe mais tensão devido a água que cobriu o equipamento. Fato que poderia comprometer o funcionamento e expor o usuário a penalidades injustas (BATISTA & NASCIMENTO, 2021).
Conclusão
Cada evento climático extremo é atrelado a uma consequência direta, cumulativa e mais aprofundada sobre os presos/as. Uma vulnerabilidade crescente em adversidades mas observada com perspectivas de ontem, ou seja, sem que haja intervenções eficazes. A instabilidade ambiental e a exclusão carcerária formam uma teia de causas e consequências que são, de certo modo, imutáveis e visíveis apenas para uma parte da sociedade, enquanto permanecem invisíveis para aqueles que têm o poder de mudar a situação. Portanto, é urgente que se desenvolvam abordagens interseccionais e adaptativas, que considerem a abrangência dessa realidade, para mitigar os efeitos dessas crises no Brasil. Diante dessas nuances, não exaustivas, a percepção pelas lentes de tecnologias como o blockchain pode oferecer transparência e rastreabilidade nas políticas ambientais e carcerárias, evidenciando repercussões em atenção a uma maior responsabilidade institucional. O engajamento entre inovação e justiça climática no sistema prisional pode ser uma trilha para romper ciclos de exclusão e apagamentos.
Referências:
ACSELRAD, Henri. Justiça ambiental e construção social do risco. In: HERCULANO, Selene; ACSELRAD, Henri; MELLO, Cecília Campello do Amaral. Justiça ambiental e cidadania. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2019.
ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Amazônia: mobilidade e território. Editora UEA, 2019.
BARROS, Maria & COSTA, Renato. Mudanças climáticas e desigualdade socioambiental na Amazônia. Revista Brasileira de Políticas Públicas, v. 18, n. 3, 2021.
BRASIL. Ministério da Justiça e Segurança Pública. Plano Nacional de Política Criminal e Penitenciária (2020-2023). Brasília, DF: MJSP, 2020. Disponível em: https://www.gov.br/mj/pt-br/assuntos/politica-penal/plano-nacional-de-politica-criminal-e-penitenciaria. Acesso em: 13 fev. 2025.
DAVIS, Angela. Are Prisons Obsolete? Seven Stories Press, 2003.
MARTINS, Marco Antônio. No calor do Rio, falta de água em presídios aumenta a tensão entre criminosos. G1, Rio de Janeiro, 08 jan. 2017. Disponível em: https://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/no-calor-do-rio-falta-de-agua-em-presidios-aumenta-a-tensao-entre-criminosos.ghtml. Acesso em: 13 fev. 2025.
PIRES, Thula; NASCIMENTO, Pedro. Racismo ambiental e encarceramento em massa no Brasil. Revista Direito e Práxis, v. 12, n. 4, 2021.
REZENDE, Constança. Superlotado, Complexo Penitenciário em Bangu sofre falta d’água. Estadão, Rio de Janeiro, 08 jan. 2017. Disponível em: https://www.estadao.com.br/brasil/rio-de-janeiro/superlotado-complexo-penitenciario-em-bangu-sofre-falta-dagua/. Acesso em: 13 fev. 2025.
[1] https://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/no-calor-do-rio-falta-de-agua-em-presidios-aumenta-a-tensao-entre-criminosos.ghtml?utm_source=chatgpt.com