A extensão da inviolabilidade do advogado e o comportamento investigatório

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Rafael Borges

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Ana Carolina Gonçalves

            A inviolabilidade da comunicação havida entre advogados e clientes está definitivamente consagrada no artigo 133 da CRFB, bem como no art. 7º, inc. II, da Lei nº 8.906/94 (Estatuto da Advocacia). A garantia constitucional e legal assegura que os advogados possam exercer suas funções com independência e sem temor de represálias. Ao passo que o sigilo profissional constitui elemento indispensável para que os advogados possam representar seus clientes e exercer o direito de defesa de maneira efetiva (art. 5º, inc. LV, da CRFB) e íntegra, a inviolabilidade resguarda a própria ordem jurídica e a confiança pública no sistema de justiça, ao impedir interferências indevidas na relação entre advogado e cliente.

            Não se trata de direito absoluto, contemplando, pois, relativizações, admitidas sob circunstâncias que indiciem, com razoável grau de probabilidade, a participação do advogado na atividade criminosa. Algumas balizas dessa relativização estão delineadas pelo §6º e seguintes do art. 7º do referido diploma legal, que oferece ao intérprete critérios bastante seguros para o levantamento excepcional da inviolabilidade, a ensejar a emissão de mandados de busca e apreensão. Conforme se depreende do dispositivo legal, a inviolabilidade poderá ser excepcionada mediante prévia decisão motivada da autoridade judicial e diante da existência de indícios de autoria e materialidade da prática de crime por parte do advogado.

            Em que pese a existência de cenário normativo atento às garantias, a advocacia convive com violações frequentes à confidencialidade de nossas relações profissionais, concretizadas em intensa atividade investigatória a partir de achados fortuitos – na maior parte das vezes desprovidos de relevância jurídico-penal –, desdobrados em apurações paralelas, sem que a investigação identifique previamente indícios ou fundadas razões acerca da participação do advogado na empreitada criminosa; e sem que exista decisão judicial autorizativa das diligências.

            Os sigilos profissionais são circunstancialmente levantados, na esteira da decisão judicial original direcionada ao cliente-investigado, à míngua de elementos mínimos de autoria e materialidade delitiva atribuíveis ao advogado e apesar da regra geral de inviolabilidade. Há um aproveitamento deliberado de decisão judicial produzida com base em outras premissas e tendo por alvo pessoas ou situações não atravessadas pelo sigilo, o que, contudo, não encontra resguardo no regramento previsto pela Lei nº 8.906/94.

            A autorização de quebra de sigilo de dados telefônicos/telemáticos de cliente-investigado não relativiza a restrição ao acesso às conversas existentes entre ele e seu advogado. A lógica impressa no art. 7º, §6º, da Lei nº 8.906/94 deve nortear a interceptação e a quebra de sigilo de comunicações/conversas de advogados, quando relacionados ao exercício da advocacia. Significa dizer que a exceção às proteções constitucional (art. 133 da CRFB) e legal (art. 7º, II, da Lei 8.906/94) ao advogado somente tem razão diante da existência de indícios de autoria e materialidade da prática de crime por parte do advogado e mediante autorização judicial. Do contrário, seria esvaziado o núcleo fundamental do direito à inviolabilidade profissional, deixando de proteger o advogado de ingerências arbitrárias.

            Ainda que se possa pensar, em hipóteses excepcionais, na possibilidade de postergação do controle judicial a respeito da legitimidade do acesso às comunicações/conversas profissionais de advogados, exige-se que a investigação revele a existência de prévias e fundadas razões/suspeitas que justificassem a medida invasiva. Seja com controle judicial prévio ou posterior, a relativização da inviolabilidade da correspondência escrita, eletrônica, telefônica e telemática de advogados, relativas ao exercício profissional, somente será lícita se demonstrada a existência de indícios de autoria e materialidade da prática de crime por parte do advogado.

            Em situações concretas distintas, mas repletas de similitude contextual, o Supremo Tribunal Federal decidiu no julgamento do Recurso Extraordinário nº 603.616 que a entrada forçada em domicílio, sem uma justificativa prévia conforme o direito, é arbitrária. Isso porque não será a constatação de situação de flagrância, posterior ao ingresso, que justificará a medida, mas a existência prévia de elementos mínimos a caracterizar fundadas razões (justa causa) para a medida excepcional. Com efeito, fixou-se a interpretação de que a entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita, mesmo em período noturno, quando amparada em fundadas razões verificadas antes do ingresso no domicílio. Embora justificadas a posteriori, as fundadas razões devem indicar que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade dos atos praticados.

            A inviolabilidade do domicilio constitui garantia fundamental assegurada na Constituição Federal. O ingresso forçado possui caráter excepcional, sendo autorizado apenas diante das raríssimas situações previstas no inciso XI do art. 5º da CRFB, quais sejam, a ocorrência de flagrante delito, desastre, oferecimento de socorro ou mediante a existência prévia de ordem judicial. Nas hipóteses de inexistência de ordem judicial prévia, há necessidade de controle judicial posterior para verificar se a medida excepcional está de acordo com o Direito. Exige-se que o magistrado identifique as fundadas razões que levaram a autoridade policial a relativizar a garantia.

            Pelo mesmo raciocínio, a exceção ao sigilo profissional não pode ser suficientemente justificada na eventualidade da obtenção de indícios de autoria e materialidade da prática de crime por parte do advogado. A legitimidade da ação dependerá, necessariamente, da demonstração de elementos prévios e concretos (fundadas razões) que levaram a crer que naquelas comunicações/conversas havia uma conduta criminosa do advogado, sob pena de subversão total da lógica da proteção legal. Trata-se de exigência probatória idêntica àquela contida no art. 7º, §6º, da Lei nº 8.906/94 para o deferimento de mandados de busca e apreensão contra advogados.

            No julgamento do RHC nº 135.683, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal analisou pedido da defesa do reconhecimento da ilicitude das investigações decorrentes de interceptação telefônica de paciente detentor de prerrogativa de foro, sem que houvesse autorização da autoridade competente. A partir do momento em que surgem indícios de participação de detentor de prerrogativa de foro nos fatos, cumpre à autoridade judicial declinar da competência, e não persistir na prática de atos objetivando aprofundar a investigação.

            A Segunda Turma entendeu que, diante do surgimento de indícios do envolvimento de Senador da República, detentor de prerrogativa de foro, a persistência na prática de atos investigatórios sem a autorização daquela Corte Suprema contaminou de nulidade os elementos de prova angariados, por violação do princípio do juiz natural (art. 5º, LIII, CF). Dessa forma, não há fortuito quando se prossegue na busca de elementos de prova por via oblíqua, sem a autorização judicial competente. 

            A situação se assemelha, ainda, às hipóteses em que colaborador delata crimes, cujo delatado possui prerrogativa de foro em razão função. Diante da prerrogativa, o prosseguimento da investigação em relação ao delatado somente será lícito se a homologação do acordo for submetida ao crivo judicial, mas perante o Tribunal competente. A questão foi analisada pela Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do habeas corpus nº 151.605/PR. Debateu-se a licitude de inauguração de procedimento investigatório contra Governador a partir de depoimentos colhidos em sede de colaboração premiada celebrada com o Ministério Público estadual e homologada pelo respectivo juízo, a despeito de seu foro por prerrogativa de função. A defesa sustentou que houve usurpação de competência e de jurisdição da Procuradoria-Geral da República e do STJ, “acarretando, por consequência, nulidade das provas dele derivadas”.

            Ao analisar o pedido, a Segunda Turma asseverou que, nos termos art. 4º, § 7º, da Lei 12.850/13, o acordo de colaboração premiada deve ser remetido ao juiz para homologação, o qual deverá verificar sua regularidade, legalidade e voluntariedade. Em razão da prerrogativa de função, será competente o Juízo mais graduado, de que a homologação de acordo de colaboração em usurpação de competência culmina no reconhecimento da ineficácia das provas produzidas com a consequente exclusão dos autos.  No entendimento do STF, a delação de autoridade com prerrogativa de foro atrai a competência do Tribunal competente para a respectiva homologação e, por conseguinte, do órgão do Ministério Público com atribuição.

            Dentro dessa lógica, ao se deparar com a existência de comunicações/conversas escritas, telefônicas e/ou telemáticas de advogados, que detêm prerrogativa profissional assegurada em lei, deve-se buscar autorização judicial específica para excepcionar a inviolabilidade. A decisão judicial de levantamento do sigilo de dados de cliente-investigado não pode constituir uma autorização genérica para a relativização de comunicações entre ele e advogado. Durante a análise dos dados e informações extraídas do cliente-investigado, ao verificar que um dos interlocutores de uma conversa ou comunicação eletrônica é um advogado ou advogado da pessoa investigada, a autoridade policial deve interromper o acesso e buscar autorização judicial específica para a relativização do sigilo.

            Não se pode fundamentar o acesso às comunicações de advogados sob o pretexto de caracterizar encontro fortuito de provas. Eventual justificativa nesse sentido importa, na verdade, em uma deturpação do instituto. Não há fortuito quando a autoridade policial tem ciência de que um dos interlocutores de uma conversa ou comunicação eletrônica é um advogado, da mesma forma em que não há fortuito na leitura de comunicações que detém nítido conteúdo profissional. Em tais situações, há busca aleatória, para, quem sabe, talvez, futuramente, encontrar provas.

            A utilização de meios legais para pescar evidências, com ou não relação com o caso concreto constitui, como explica Alexandre Morais da Rosa, fishing expedition. Trata-se, deste modo, de uma “investigação especulativa indiscriminada, sem objetivo certo ou declarado, que, de forma ampla e genérica, ‘lança’ suas redes com a esperança de ‘pescar’ qualquer prova, para subsidiar uma futura acusação ou para tentar justificar uma ação já iniciada”.[1]

            Por si só, o artigo 133 da CRFB seria razão bastante para blindar a comunicação entre advogados e clientes de diligências investigatórias carentes de fundamentação e direcionamento específicos, afinal, o “advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei”. Ao disciplinar esta prerrogativa profissional, o Estatuto da Advocacia, em complemento, condiciona diligências invasivas à presença de “indícios de autoria e materialidade da prática de crime por parte de advogado”, exigindo-se “decisão motivada”, executada mediante “mandado de busca e apreensão, específico e pormenorizado, a ser cumprido na presença de representante da OAB, sendo, em qualquer hipótese, vedada a utilização dos documentos, das mídias e dos objetos pertencentes a clientes do advogado averiguado, bem como dos demais instrumentos de trabalho que contenham informações sobre clientes” (art. 7º, § 6º). 

            Impõe-se, na sequência, que “a medida judicial cautelar que importe na violação do escritório ou do local de trabalho do advogado” seja “determinada em hipótese excepcional, desde que exista fundamento em indício, pelo órgão acusatório” (art. 7º, § 6º- A). Não se cogita de fungibilidade dos indícios de autoria e materialidade, mormente após a nota de excepcionalidade expressa trazida pela Lei. Os indícios de autoria e materialidade, bem como os fundamentos que serviram ao decreto original, ao tempo em que a investigação não mirava no advogado, não foram analisados à luz da regra geral de inviolabilidade. O achado fortuito, cujo aproveitamento não encontra proibição expressa no ordenamento, se capaz de gerar investigação válida contra advogado, deve ser submetido a imediato controle judicial, sob pena de nulidade da prova.

            Prosseguir-se com a investigação, redirecionando ou adicionando ao alvo advogado, afetado em razão ou em decorrência do exercício da profissão, importa em ampliação indevida do escopo da decisão autorizativa das diligências originais. Deve haver uma diferença, em matéria de standard, entre os mandados de busca e apreensão em geral e aqueles dirigidos contra advogados. Significa dizer que a lei exige critérios e parâmetros específicos, que devem ser observados durante a atuação do julgador.

            Nas palavras de Janaína Matida, os standards probatórios compreendem um grau mínimo de corroboração que uma prova deve ser para ensejar a condenação de um indivíduo. Na medida em que “dizer que há prova suficiente porque se há atingido a convicção do julgador é abrir mão de qualquer controle da racionalidade judicial”, a lei estabelece “soluções institucionais às limitações cognitivas que acometem os juízes”[2]. Dessa forma, o standard probatório orienta a atividade jurisdicional, oferecendo parâmetros para aferir se, no caso concreto, a hipótese acusatória está ou não suficientemente provada.

            Como o art. 7º, §6º, da Lei nº 8.906/94 prevê requisitos específicos para a expedição de mandados de busca e apreensão direcionados a advogados, entende-se que a relativização da inviolabilidade em relação às comunicações de advogados igualmente deve observar o standard exigido. Não se trata de um privilégio de classe e tampouco uma exclusividade pertinente aos cidadãos que mantenham inscrição ativa junto à OAB: é uma emanação bastante óbvia da regra geral de confidencialidade, prerrogativa profissional com previsão normativa expressa, igualmente incidente sobre outras profissões, como médicos, terapeutas e assistentes religiosos.

            A confidencialidade prevalecerá no plano da realidade concreta apenas se existir um dique de proteção separando o olhar dos agentes de persecução penal da comunicação havida entre advogados e clientes. Esse dique impõe aos investigadores postura omissiva e comissiva. Espera-se que se omitam de levantar o sigilo, mesmo que eventual achado fortuito sugira participação do advogado na atividade criminosa; espera-se que requeiram ao juiz competente autorização expressa para investigar o advogado, desde que, evidentemente, aquele achado fortuito contenha indícios inequívocos de sua participação ou coautoria.

            O standard probatório está, pois, em nível superior, porque a regra geral de confidencialidade se refere a múltiplos bens jurídicos com estatura constitucional. Soma-se ao direito à privacidade, de abrangência indistinta, os direitos ao contraditório e à ampla defesa, materializados efetivamente apenas quando colocados sob o guarda-chuva do sigilo. Como toda prerrogativa profissional, a confidencialidade inerente ao exercício da advocacia transcende da figura do advogado, de tal forma que sua violação, mesmo regularmente autorizada, afetará a privacidade do cliente, a privacidade do profissional e a sua capacidade técnica de produzir defesa plena e ampla.

            Tamanha potencialidade lesiva requer uma iniciativa investigatória solidamente embasada. Não foi por outro motivo que o legislador criou uma disciplina normativa própria para o deferimento de mandados de busca e apreensão contra advogados, embora tenha mantido a disciplina de outros meios de obtenção de prova, como a interceptação telefônica ou telemática, no regramento comum, talvez inadvertidamente. A lei exige excepcionalidade, presença de “representante da OAB” durante a diligência e ao tempo da análise do material arrecadado, “decisão motivada”, “mandado específico e pormenorizado”, “fundamento (da medida cautelar de busca e apreensão) em indício”; veda a medida cautelar se “fundada exclusivamente em elementos produzidos em declarações do colaborador sem confirmação por outros meios de prova”; restringe e segrega a diligência ao objeto circunstanciado da investigação (art. 7º, § 6º e seguintes da Lei nº 8.906/94). Esse conjunto de requisitos e normas de procedimento, ausentes do regramento comum e cuja inobservância pode, inclusive, ensejar abuso de autoridade (art. 7º-B da Lei nº 8.906/94), sinalizam para a higidez daquele dique protetor e para a necessidade de um standard probatório mais elevado.

            Há uma conveniência investigatória no aproveitamento do achado fortuito, todavia, trata-se de expediente abusivo, nulo e ilegal: faz parecer prescindível a identificação prévia de indícios de autoria e materialidade, contrariando, mutatis mutandi, entendimento do Supremo Tribunal Federal no RE nº 603.616, e rebaixa o valor constitucional e legal do sigilo, atalhando a relativização das regras de proteção. Não há defesa de blindagem aos advogados, senão crítica a comportamentos investigatórios que levantam a confidencialidade sem observar as regras pertinentes. A circunstância de indícios haverem sido encontrados no curso de uma investigação autorizada e regular não chancela todo e qualquer produto que advenha desse esforço probatório, particularmente quando essa extensão alcança advogados, aos quais incumbe assegurar a defesa plena e ampla dos jurisdicionados.

            Os direitos (e não apenas dos investigados ou réus) devem ser garantidos, o que significa exigir que eventuais exceções ocorram motivadamente, seja por autorização judicial prévia, seja por fundadas razões observadas anteriormente à restrição, como nas hipóteses, acima expostas, de busca e apreensão sem prévio mandado judicial. Eventual justificativa a posteriori não tem o condão de legitimar o acesso a conteúdo sigiloso. Do contrário, o encontro fortuito de prova figurará como um meio a legitimar buscas aleatórias sem alvos definidos (fishing expedition), o que desvirtua a causalidade exigida para caracterização do fortuito.

O tema da inviolabilidade já foi objeto de debate no Supremo Tribunal Federal, assim como outras prerrogativas da advocacia, por intermédio da ADI nº 1.127. Na ocasião, julgou-se, por unanimidade, improcedente a ação direta quanto ao inciso II do artigo 7º, declarando-se a sua constitucionalidade. Posteriormente alterado pela Lei nº 11.767/2008, o dispositivo manteve em sua nova redação a garantia quanto à inviolabilidade de qualquer tratativa entre advogado e cliente.

            Na Reclamação nº 57.996/SP, o Ministro Relator Alexandre de Moraes deferiu pedido de medida liminar ajuizada contra decisão proferida pelo juízo de origem, por desrespeitar o art. 7º, II, da Lei nº 8.906/94. A decisão do juízo da 2ª Vara Regional de Competência Empresarial e de Arbitragem de São Paulo havia determinado a busca e apreensão de e-mails de todos os diretores, administradores e gestores do Grupo Americanas, o que incluía mensagens trocadas com advogados. Ao analisar o pedido, o Relator entendeu que a busca e apreensão foi autorizada de maneira ampla, colocando em risco a garantia do sigilo de comunicação entre advogado e cliente.

            Naquela oportunidade, destacou-se que:

Eventual apuração de irregularidade contábil e mesmo de gestão não pode afastar, sem fundamentos de extrapolamento do exercício da advocacia, o sigilo imposto às conversas, havidas por qualquer meio, entre advogado e seu representado.

Eventual existência de investigação ou imputação a administradores, acionistas e funcionários, nos termos manifestados pelo Banco Bradesco nos autos da ação 1000147-05.2023.8.26.0260, em trâmite em São Paulo, não desnatura o sigilo das conversas havidas com advogados por eles contatados como garantia à função essencial destes no sistema de Justiça, mas também aos investigados.

A decisão reclamada, ao determinar o acesso pelo beneficiário Bradesco a todos os e-mails do Grupo Americanas, inclusive em relação a seus advogados, caracteriza ofensa ao que decidido na ADI 1.127. [3]

            Portanto, embora deferida a quebra de sigilo de informações/dados telefônicos e telemáticos de investigados, entendeu-se que a inviolabilidade de que trata o art. 7º, II, da Lei nº 8.906/94 não poderia ser genericamente relativizada. A existência de uma investigação em curso não corrompe o alcance da proteção normativa específica, que tem por escopo assegurar não só o exercício da advocacia (art. 133, CF), mas também à parte representada a efetivação do seu direito de defesa (art. 5º, LV, CF).

            No Inquérito 4.940/DF, o Ministro Dias Toffoli do Supremo Tribunal Federal deferiu pedido da defesa dos investigados e da Ordem dos Advogados do Brasil, para excluir dos autos “transcrições de diálogos e ‘prints’ de imagens e de documentos que veiculem comunicações entre os investigados e seu advogado”. Destacou, nesse sentido, que era assente na jurisprudência daquela Corte “a inviolabilidade do sigilo entre o advogado e seu cliente, salvo quando revelarem indícios de prática criminosa, o que não se constata nos autos”.[4]

            O entendimento da Suprema Corte brasileiratambémpode ser observado a partir do julgamento do MC-HC nº 129.569/DF, em que, em seu voto, o Ministro Relator Ricardo Lewandowski deferiu a ordem para que fosse fosse preservada a confidencialidade que rege a relação entre cliente e advogado, notadamente para resguardar o sigilo profissional dos advogados e o direito de defesa. Asseverou, ainda, que:

(...) para se preservar a higidez do devido processo legal, e, em especial, o equilíbrio constitucional entre o Estado-acusador e a defesa, é inadmissível que autoridades com poderes investigativos desbordem de suas atribuições para transformar defensores em investigados, subvertendo a ordem jurídica.[5]

            Na Comissão de Prerrogativas da OAB/RJ, encontra-se um conjunto relevante de casos em que a quebra da inviolabilidade não se fez acompanhar pelo respectivo controle judicial, motivando considerações deletérias ao advogado no caderno investigatório. Em diversas situações, as conversas profissionais entre cliente-investigado e advogado são interceptadas, transcritas e expostas nos autos de inquéritos policiais sob o pretexto de existir autorização judicial prévia, como se a investigação fosse um ato ilimitado.

            Nos autos de um procedimento cautelar de quebra de sigilo de dados decorrente de investigação conduzida pela Delegacia de Polícia Federal em Nova Iguaçu-RJ, ao apresentar o resultado da interceptação telefônica, a autoridade policial expôs conversas havidas entre o investigado e seu advogado, acompanhadas de foto e dados pessoais do advogado. Não havia decisão judicial que autorizasse o levantamento do sigilo das correspondências telefônicas e telemáticas do advogado, tampouco foram apresentadas pela autoridade policial fundadas razões que justificassem o acesso e exposição do conteúdo das conversas que, aliás, nada de ilícito possuía. Violou-se o sigilo como se inexistentes fossem as proteções constitucional e legal conferidas aos advogados. Após pedido do advogado e intervenção da Comissão de Prerrogativas da OAB-RJ, o magistrado da 4ª Vara Federal Criminal da Seção Judiciária do Rio de Janeiro determinou o desentranhamento das páginas que mencionavam o advogado, ainda que não tenha entendido pela ilicitude da atuação policial, quando do extrapolamento da decisão judicial anterior.

            Em situação semelhante, no curso de investigação conduzida pela Delegacia de Homicídios da Capital do Rio de Janeiro, a autoridade policial representou pela quebra do sigilo telefônico do investigado e de seu genitor, enquanto medida necessária e útil para a continuidade da apuração dos fatos. Após o deferimento da quebra pelo juízo da 1ª Vara Criminal da Comarca da Capital, a autoridade policial apresentou o resultado da diligência, que, dentre outras informações, contava com a exposição de conversas travadas em um grupo no aplicativo WhatsApp em que os integrantes eram dois advogados e dois clientes, pai e irmão do investigado.

            No caso em destaque, a primeira mensagem do grupo indicava que o mesmo havia sido criado para facilitar a comunicação entre os clientes e os advogados, o que revelava o evidente caráter profissional da conversa. Não obstante o alerta inicial, todas as mensagens trocadas entre clientes e advogados foram devassadas ao longo do relatório policial, inclusive com imagens dos advogados em questão. Mesmo diante da ausência de decisão judicial a esse respeito, a autoridade policial não renovou a representação em busca de autorização específica, tampouco declinou fundadas razões para a medida invasiva.   

            Instada pelos advogados, a Comissão de Prerrogativas da OAB-RJ, com fundamento no disposto no art. 49 da Lei nº 8.906/94, requereu ao juízo da 1ª Vara Criminal da Comarca da Capital o desentranhamento das conversas captadas a partir da interceptação telefônica e quebra de sigilo de dados telemáticos de clientes e que repercutiu sobre a inviolabilidade de advogados. A magistrada ressaltou que o fato de casualmente terem sido captadas conversas entre os advogados e o investigado não constituíram argumento válido para anular decisão da qual os causídicos não eram objeto, mas determinou o desentranhamento dos autos.

            O conjunto apresentado dá conta da importância do debate em questão. Em um Estado de Direito, não podem ser toleradas medidas investigativas que extrapolem as balizas legais e judiciais, violando o sigilo profissional, sob a justificativa de causalidade do acesso. Expõem-se a intimidade de advogados, antecipam-se estratégias profissionais, compromete-se a confidencialidade e, sobretudo, a liberdade de atuação profissional de advogados. Combater tal prática, mais do que garantir a atuação plena e independente da advocacia, essencial à administração da Justiça, preserva a higidez do devido processo legal e a paridade de armas, o que deve ser almejado por todos os atores do sistema de justiça criminal.

Rafael Borges, advogado criminalista, sócio de Nilo Batista & Advogados Associados, secretário-geral da OAB/RJ.

Ana Carolina Gonçalves, advogada criminalista, Procuradora da OAB/RJ, doutoranda e professora de criminologia na PUC-Rio.


[1]GHIZONI DA SILVA, Viviane; MELO E SILVA, Philipe Benoni; ROSA, Alexandre Morais da. Fishing expedition e encontro fortuito na busca e na apreensão: um dilema oculto do processo penal; Florianópolis: Emais, 2019, p. 41.

[2] MATIDA, Janaína. Standards de prova: a modéstia necessária a juízes e o abandono da prova por convicção. In: Arquivos da Resistência: Ensaios e Anais do VII Seminário Nacional do IBADPP. Rio de Janeiro: Tirant Brasil, 2019, p. 94-95.

[3] RCL 57.996/SP, relator o ministro Alexandre de Moraes, julgado em 16/2/2023.

[4] Inq. nº 4940/DF, Relator o Ministro Dias Toffoli, julgado em 19/4/2024.

[5] MC-HC nº 129.569/DF, Relator o Ministro Ricardo Lewandowski, publicada em 30 de julho de 2015.

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