Segundo entrevistado do projeto A Prosa da Sacerj, o professor e advogado criminalista Nilo Batista conversa com o ex‑aluno e hoje sócio, Rafael Fagundes — secretário cultural da Sacerj. Entre lembranças e análises precisas, a entrevista costura Direito, Política, História e Literatura, sob cuidadoso enfoque humanista.
Com humor machadiano, Nilo recorda o sonho de lecionar na UFJF — “desde Édipo, a ideia é essa: dar aula onde a gente se formou”.
Advogado que deu nome ao Escritório Modelo da Sacerj, Nilo Batista revisita o contexto que motivou a criação da Sociedade e analisa as transformações da advocacia criminal desde os anos 1990, quando a repulsa às violações cedeu lugar à naturalização — e, não raro, ao aplauso — das opressões penais.
Ele trata da “policização” para além das corporações de polícia — alcançando operadores do sistema de justiça e a mídia — e resgata o papel da Sacerj como voz que se pronuncia, em defesa das liberdades e de uma crítica penal substantiva.
Com mais de seis décadas de atuação, mistura memórias e teoria: fala de formação, de uma dogmática com sentido político e social, da soberania do júri como espaço de humanização do Direito Penal e manifesta ceticismo quanto ao uso de inteligência artificial em decisões judiciais.
Aos jovens criminalistas, deixa dois conselhos simples e úteis — paciência e determinação — e uma provocação espirituosa: se for para queimar as caravelas, “queime jovem; depois de certa idade, não se queima mais nada”.

Rafael Fagundes: Bom dia, Professor, obrigado pela honra de me conceder essa entrevista. Como essa é uma entrevista para o Boletim da Sacerj, eu gostaria de iniciar lhe perguntando: como nasceu a Sociedade dos Advogados Criminais do Estado do Rio de Janeiro?
Prof. Nilo Batista: É uma honra falar para os meus colegas da SACERJ. Essa sociedade surge em condições peculiares e, como toda sociedade, surge por um bom motivo. Surge no momento em que o campo progressista sofre uma derrota política na Ordem dos Advogados do Brasil. Ressalve-se que na eleição para a Ordem não é decisiva a questão política, ainda que seja claramente um ato político. E isto é relevante no caso dessa instituição, pelos seus compromissos com a legalidade democrática, com o Estado de Direito.
Tivemos a ideia de criar a SACERJ porque prevalece entre os criminalistas uma característica, no mínimo, liberal em termos políticos. Nós lidamos com a liberdade, e as opressões sociais se manifestam, hoje, através do sistema penal. Quando eu era jovem, meus colegas mais sensibilizados com a tragédia social brasileira estudavam Direito do Trabalho. Hoje, vão estudar direito penal. Porque as opressões eram mais claras 60 anos atrás, por meio da luta de classes.
Atualmente, esses problemas estão velados pelas opressões penais, em que pouca gente vê a natureza política. Brizola via a natureza política. Em junho, o presidente Lula visitou a sede da Interpol e disse que a criminalidade está crescendo, com a força de grupos organizados. Essa diferença é para ser anotada.
Rafael Fagundes: A SACERJ surge nos anos 1990 com pautas da advocacia criminal daquela época. E ressurge, nos últimos anos, com pautas um pouco diferentes. Quais seriam, a seu ver, as dificuldades do advogado criminal dos anos 90 e as do advogado criminal desse primeiro terço de século XXI?
Nilo Batista: Nos anos 90, vivíamos o sonho, tínhamos uma constituição novinha em folha. O Brasil era uma criança aprendendo a ler na creche do neoconstitucionalismo. Tínhamos esperança de que tudo aquilo que ajudou a despejar na lata de lixo da História o regime militar – a tortura de pessoas, o autoritarismo, o subsistema penal, o DOPS –, tínhamos esperança de que desapareceria. E foi uma enorme decepção, porque, enquanto na saída da ditadura – como disse a Verinha, que até cunhou uma expressão para isso –, havia uma grande repulsa contra essas violações, passou-se depois por naturalização e, agora, por aplauso. Ela chama isso de adesão subjetiva à barbárie.
Recentemente, no carro a caminho do escritório, ouvi em um programa de rádio comentários sobre o caso do Santo Amaro, e o jornalista da CBN dizia que o garoto morto era igual a nós, era um trabalhador [o jovem Herus Guimarães Mendes, de 24 anos, foi morto por um policial no dia 7 de junho de 2025 naquela comunidade, no bairro do Catete, no Rio de Janeiro]. Significa que se ele não fosse igual a nós, estava tudo bem. O que o jornalista frisava era como o garoto era igual a nós, um trabalhador. É uma situação naturalizada.
Rafael Fagundes: Houve, portanto, a mudança da repulsa para o aplauso, da adesão subjetiva à barbárie.
Nilo Batista: Sim. E a SACERJ, tanto em sua primeira presidência sob Evandro Lins e Silva, quanto na gestão de Alexandre Dumans, teve que começar a se pronunciar, porque a naturalização cresceu muito, piorou muito.
Rafael Fagundes: No seu livro Direito Penal Brasileiro, volume 1, o senhor fala sobre o processo de ‘policização’, ou seja, um processo de embrutecimento da formação do policial para ele poder exercer a função dentro do sistema penal. Considerando a adesão subjetiva à barbárie, hoje em dia podemos dizer que a sociedade está ‘policizada’? Que houve uma ‘policização’ para além da polícia?
Nilo Batista: Cabem parênteses aqui. Quem pensa que o problema do policial é do recrutamento, ou da formação, está completamente enganado. O problema é da atividade, é uma atividade embrutecedora. Se nós, da SACERJ, tivermos que dominar gente fisicamente, empurrar etc., vamos embrutecer. Daqui a um tempo, esse tipo de policial vai produzir uma indignação que, soterrada, vai explodir um dia, como um vulcão…
No futuro, se ainda tivermos essa atividade de contenção humana da maneira como é hoje, o cargo de policial só poderá ser temporário. A pessoa vai ser policial durante um certo tempo, oito anos, talvez, depois vai fazer outra coisa. Ele não pode ser um bruto a vida toda, ou estar num trabalho embrutecedor a vida toda. Isso vai ter de ser uma coisa limitada.
E, claro, a ‘policização’ não alcança só policiais, não. Há advogados ‘policizados’, promotores ‘policizados’, juízes ‘policizados’, jornalistas ‘policizadíssimos’. A ‘policização’, quer dizer, essa dessensibilização para a tragédia humana que ocorre nos sistemas penais, sempre existiu. Basta estudar o assunto e não se contentar com o véu diáfano da fantasia, como se dizia nos tempos de Eça de Queiroz, quando do advento do realismo na literatura.
Rafael Fagundes: Recentemente, o senhor completou uma marca pessoal importante. Sessenta anos de advocacia.
Nilo Batista: Foi ótimo. Até confundiram, acharam que era oitenta. Ah, de advocacia?
Rafael Fagundes: De advocacia.
Nilo Batista: Achei que tinham confundido a minha idade, já estava feliz da vida. Sessenta e um, na verdade.
Rafael Fagundes: O senhor passa por sessenta e um anos de idade tranquilamente. Mas são sessenta e um de advocacia, não é, professor?
Nilo Batista: Sim, sim. O primeiro júri que eu fiz na minha vida, o primeiro julgamento de que participei, foi na companhia do falecido Paulo Nader, que era professor de Filosofia do Direito na Universidade Federal de Juiz de Fora. Ele era dois ou três anos à minha frente, eu acho. Ele se formou em sessenta e cinco. E em Juiz de Fora, e acho que muito no interior do País, até a metade do século XX, quando o estudante se formava, tinha de fazer um julgamento na sua cidade; para a família ver, os amigos, vizinhos.
O fato é que Paulo Nader foi fazer o júri e me chamou. Eu era solicitador – naquele tempo não era estagiário, de acordo com a lei anterior à 4.215. Você recebia a carta de solicitador dada pelo presidente do Tribunal de Justiça do Estado. E tinha as atribuições parecidas com as de um estagiário, um pouquinho mais. E eu fiz o júri junto com ele. O réu chamava-se Inácio. Era um homicídio passional, perto da linha do trem, uma história romântica de pobres. O Inácio resolveu o problema do adultério da mulher dele, verdadeiro ou falso, eu não sei, com uma foice. No comborço.
Rafael Fagundes: Tinha um quê de Otelo nessa história?
Nilo Batista: Sem dúvida, tinha um quê de Otelo. Otelo, tadinho, Otelo… No famoso monólogo depois de matar Desdêmona, ele diz, aspas para Shakespeare, “que foi um homem que, sem saber amar, amou profundamente”. Ele se reconhece, é um general, um homem meio bruto. Por isso ele faz aquela lambança de matar Desdêmona e depois se matar, que é o modelo dos homicídios passionais. No homicídio passional, em 90% dos casos, o homicida atenta contra sua própria vida.
Fizemos um júri – até fui mal interpretado por umas companheiras feministas, tivemos uma pequena briga pela imprensa – em que levei exatamente o texto do Otelo para os jurados entenderem o ciúme, que, diz Shakespeare, é um monstro de olhos verdes.
Rafael Fagundes: O senhor tem cinco filhos e diz que não tem – eu também sou pai, então entendo – filho preferido. E caso preferido? Teve caso preferido nesses 60 anos?
Nilo Batista: Não, realmente não tive. Trabalhei em milhares de casos, procurei em todos eles fazer aquilo que nossos colegas da SACERJ fazem, estudar a causa toda, conhecer todos os pormenores do processo, procurar doutrina cabível, jurisprudência, verificar o argumento que, digamos, entraria na veia, porque todo caso tem um argumento que é “o” argumento. Recompõe, pode estar em crise de falta de açúcar, injeta na veia o remédio, o paciente recupera-se em dois tempos.
Todo caso também tem uma micropolítica criminal, que é o tom que você vai assumir. Pode ser um tom dubitativo, um tom assertivo, e isso também varia de acordo com os destinatários. Em todo caso, é preciso conhecer um pouco o promotor, o juiz, a formação deles. É preciso igualmente escolher bem o argumento e até a forma do argumento. Então, eu não diria que eu tenho um caso preferido, gostei de muitos casos. Aliás, para ser sincero, acho que eu curto todo caso, até por causa dessa unicidade, dessa originalidade. Já encontrei dois casos iguais? Nunca. Mesmo que objetivamente forem a mesma coisa, as tinturas subjetivas vão criar outras situações para a produção de argumentos.
Rafael Fagundes: Mas teve algum caso mais difícil, aparentemente sem saída?
Nilo Batista: Ah, aconteceu várias vezes. Mas nessas ocasiões você pesquisa mais, vê vários ângulos e consulta colegas. Fiz isso abusivamente; consultei o Heleno Fragoso, o Evandro Lins e Silva, um verdadeiro craque, além de outros colegas. É sempre bom ouvir outras opiniões, procurar outro enfoque. Porque é um jogo de armar: às vezes, sem determinada peça, fica mais claro. E é um jogo argumentativo também. Até os partidários da viragem linguística acham que é um jogo mesmo, um jogo linguístico.
Rafael Fagundes: Por que o senhor decidiu estudar Direito Penal?
Nilo Batista: Porque não tinha vaga para Direito Civil no final de 1966, início de 67, na Universidade do Estado da Guanabara (hoje UERJ), onde fiz o mestrado. A turma de Direito Privado estava fechada. Isso explica por que eu não passo de um advogado remediado. Se eu tivesse feito carreira no Direito Civil, estaria bem melhor do ponto de vista econômico-financeiro.
Rafael Fagundes: Todo mundo namora com o Penal e casa com o Civil. O senhor namorou o Civil e se casou com o Penal?
Nilo Batista: Mas foi um namoro curioso, porque foi um namoro bem intelectual. Na faculdade, dois campos teóricos me interessaram. O Direito Penal me interessou, especialmente pelas aulas do professor Marsicano Ribeiro. Naquela época, a disciplina de Direito Penal era distribuída em cinco anos. Fiz com Ribeiro o terceiro ano. Ele era um teórico intelectual.
Também me recordo com carinho do professor Milton Blas Paiva, promotor de justiça. Era um professor que cativava por um conjunto de causos que ele narrava com encanto e me atraía muito. Já o professor Sebastião Marsicano se inclinava para uma teoria do delito mais elaborada. Eu me interessei principalmente pela teoria geral do Direito Civil: ato jurídico, pessoa, obrigações. Certamente eu estudei no livro do Clóvis Beviláqua, e eu recomendo que todos vocês o leiam.
Mesmo para quem faz Direito Penal, é fundamental conhecer a parte geral do Direito Civil. Crimes contra o patrimônio, se não conhecer, você não faz bem. Foi o maior presente que recebi. Fiz porque queria ser professor na Universidade Federal de Juiz de Fora. Esse era o meu sonho. Desde Édipo, a ideia é essa: você quer ser professor onde se formou.
Mas isso me deu direito a ter hoje a seguinte frase: fui aluno direto de Roberto Lira e de Heleno Fragoso. Quantos advogados mais, quantos professores mais podem falar isso?
Rafael Fagundes: O senhor chegou no Rio de Janeiro para fazer mestrado em Direito Civil e voltar para ser professor em Juiz de Fora/MG. E terminou sendo advogado criminalista e morando no Rio.
Nilo Batista: Fiz concurso para professor assistente da Universidade Federal de Juiz de Fora, em 1970. Fui aprovado em primeiro lugar, mas não fui nomeado porque advogava para presos políticos no Rio. A única discriminação que eu sofri, bem pequena se comparada a tanto sofrimento, tanta coisa que tantas pessoas sofreram.
Rafael Fagundes: Então eu tenho alguma coisa a agradecer pela ditadura militar…
Nilo Batista: Em certo sentido. Foi uma coisa dos militares, não da universidade, foi uma imposição. O reitor que se viu jungido a não me nomear, Gilson Salomão, era pai de Margarida Salomão, posteriormente reitora da mesma universidade, tendo me condecorado com a Medalha Juscelino Kubitschek em 2004. Fizemos as pazes, a faculdade e eu, graças à professora Margarida Salomão, professora doutora, hoje dedicada e benquista prefeita da cidade de Juiz de Fora.
Rafael Fagundes: Nessa época, além de advogar, o senhor tornou-se promotor?
Nilo Batista: Eu tinha de me sustentar no Rio. Fiz um concurso na velha província e fui aprovado, apesar da minha nota em Civil não ter sido muito boa. Passei acho que em quarto lugar, se bem que essa contabilidade só existe nos concursos acadêmicos. Durante um período, fui advogado no estado de Guanabara e promotor de Justiça no estado do Rio. Consegui manter isso durante um tempo. Quando se anunciou a fusão dos estados, eu tinha 28 anos e estava no final da carreira, já era Procurador da Justiça substituto no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, e, portanto, tive que escolher. Pedi exoneração do Ministério Público. Poderia ter sido procurador-geral do Brizola, mas não fui.
Rafael Fagundes: Como era o promotor Nilo Batista? Era duro?
Nilo Batista: Alguns colegas fechavam a cara para mim. Eu me lembro de um caso, em Macaé, sobre o qual até fiz um estudo. Era um homicídio qualificado por aleivosia. Eram inimigos públicos, o problema era que “esses dois não podem se encontrar, eles vão se matar”. Um rosnava, o outro rosnava. E um dia um pensou: “vou matar ele lá agora”. Encontrou a casa aberta, entrou, viu o cara dormindo e matou. Eu sustentei que não era o caso de aleivosia, que é uma agravante, uma qualificadora histórica do homicídio.
Mas, para mim, o estado de indefensabilidade tem de ser produzido pelo sujeito ativo, por ter se aproveitado da hospitalidade. Lembro da peça Macbeth; Shakespeare outra vez. Você tem um hóspede, vai lá à noite e mata o seu hóspede. Então, por causa disso, puni. Não lembro o nome do querido colega que ficou indignado com o meu parecer. Acho que eu dava pareceres adequados ao que eu pensava. Alguém brincou comigo que eu dividia os pareceres, os ímpares eram meus, os outros eram do César [César Augusto de Faria], um bom colega, um veterano de história popular. E diziam que havia disputa para o parecer ser meu, não do César, na primeira Câmara Criminal.
Rafael Fagundes: O senhor advogava com Heleno Fragoso, no escritório dele. E um belo dia o senhor resolve abrir o próprio escritório. Qual foi o racional dessa decisão?
Nilo Batista: Um dos maiores genocidas do continente americano, Cortés, queimou as caravelas para não poder voltar. Eu queimei as caravelas. Tinha 28 anos, não tinha filhos. Então, pensei: vou pedir exoneração do Ministério Público e fazer o meu escritório. Vou deixar o escritório do querido mestre Heleno e fazer o meu escritório. Foi o que eu fiz.
Rafael Fagundes: Então, para o advogado jovem da SACERJ que está lendo, se for para queimar as caravelas, queime jovem.
Nilo Batista: Queime jovem. Depois de uma certa idade, você não pode mais queimar coisa alguma.
Rafael Fagundes: O senhor sempre briga quando alguém diz que o senhor é historiador, então não vou brigar. Mas de onde vem o amor pela História?
Nilo Batista: Aqui preciso contar um causo. Havia um personagem forense, o Luiz César Bittencourt, que foi juiz do antigo Tribunal de Alçada. Eu brincava que ele era “meu duplo colega”, mas ele tinha o curso de História, e eu não. Eu era um amador que procurou ler um livrinho aqui, um livrinho ali de metodologia, de História.
Em frente ao Fórum, havia uma churrascaria que reunia advogados, juízes e promotores. Para quem viu o filme brasileiro Bar Esperança, de 1983, o espírito era mais ou menos aquele. Depois do expediente, nós íamos a essa churrascaria, chamada Chamego do Papai, para conversar, beber etc. Eram uns tempos interessantes em que não prevalecia o sinete corporativo, mas o das afinidades literárias, políticas, estéticas.
Então, os advogados, os juízes, os promotores, digamos, politicamente do campo progressista, vamos chamar assim, conversavam, se reuniam. Os mais conservadores se reuniam em outra mesa. Também bebiam. Deviam beber mal, mas bebiam. Costumava haver uma acirrada disputa sobre a capacidade etílica das pessoas. Eu ganhei um concurso desses, deixando Leôncio de Aguiar Vasconcelos liquidado. Um dia, já com certo nível etílico, o Luiz César disse “não sou seu ‘duplo colega’ porque nem você é historiador, nem eu sou jurista”. Foi isso.
Faço parênteses para agradecer a dois colegas a quem devo muito nessa área: uma professora de História, Gizlene Neder, e um professor de Ciência Política, Gisálio Cerqueira. A eles, fiz uma dedicatória que repito aqui: sem História e sem Ciência Política, a lei é indecifrável. As palavras não dão conta se você não ‘historicizá-las’. Portanto, eu me dediquei.
A maior prova daquilo que Marx disse, que a única verdade é a História, é pensar no século XX. Vamos fazer umas marcas: 1905, 1935, 1965, 1995. Num concurso, temos a pergunta: “o que é culpabilidade?” A resposta certa de 1905 é diferente da resposta certa de 1935, por sua vez diferente da resposta certa em 1965, diferente da resposta certa em 1995. Em 1905, você só tinha a concepção psicológica ‘imputativa’ de culpabilidade. Porque o primeiro trabalho que se debruça sobre o conceito da culpabilidade é de 1907. E a única verdade aí é a História. Então, eu fiquei convencido de que é assim.
Aliás, cada vez mais me convenci disso. Se você quer conhecer e entender uma questão jurídica, procura ver de onde ela vem. Nossa coação moral irresistível, por exemplo, provém da força e medo irresistíveis presentes no Código do Império, com raízes romanas. Então, você compreende. Corta isto e você tem quase um quebra-cabeça: você pode acertar, mais vai errar muito mais do que acertar.
Rafael Fagundes: Agora, com 81 anos, o senhor está deixando a academia?
Nilo Batista: Estou deixando a academia, mas o hábito permanece. Acabei de escrever um texto que, eu creio, meus colegas da SACERJ vão gostar. É um estudo sobre um julgamento na metade do século XX. Um julgamento que aconteceu em Niterói em 1951. Quando eu terminei o texto, vi que era quase um testamento acadêmico, porque, na verdade, deixei ali cinco propostas de estudos a serem desenvolvidas.
Para um pós-graduando destemido, estão lá cinco propostas de estudos magistrais ou doutorais, depende de quanto se quer perfurar o solo. São cinco temas que não orientei enquanto estava na ativa, mas eu continuo professor, embora não esteja mais na sala de aula. E vou estar pouquíssimo em bancas.
No segundo semestre, Verinha e eu vamos viajar… “Se alguém perguntar por mim, diz que fui por aí, levando um violão debaixo do braço…”. Alguém lembra dessa música do Zé Keti e do Hortêncio Rocha?
Rafael Fagundes: O senhor foi meu professor, por isso fico muito à vontade em chamá-lo assim. Lembro que o senhor sempre foi um professor muito estrito, principalmente com estudo e teoria do delito. E vemos – pelo menos eu vejo – uma dogmática cada vez mais entrincheirada em si mesma, ou seja, nas regrinhas, no que diferencia esse instituto daquele instituto, o dolo eventual e a culpa consciente, o dolo sem vontade, e vamos inventando cada vez mais essas pequenas categorias.
Ao mesmo tempo, temos um Judiciário que liga cada vez menos para esse tipo de distinção e julga muito mais de uma maneira, vamos chamar, neoconstitucionalista, com o coração. O advogado ainda tem de saber dogmática? Ainda vale a pena para o advogado criminal aprofundar-se na dogmática?
Nilo Batista: Claro, vale a pena a dogmática. Mas vale a pena quando os frutos que ela produz valem a pena política e socialmente. Uma dogmática que é só uma maneira de enterrar as pessoas na cadeia o resto da vida, Carrara chamava de ciência nojenta. E Pavarini, quase dois séculos depois, chamava de arte obscena.
A dogmática tem que ter uma tarefa política e social. Você não pode estar no campo “meu negócio é produzir conhecimento”. Esse conhecimento vai fazer o quê? Vai produzir sofrimento no mundo? A dogmática não pode saber que o produto final é sofrimento. Não pode se dirigir como Jakobs a seus discípulos. O sofrimento não tem nada a ver com a pena. O funcionalismo jakobiciano não está com nada. Pena é essencialmente sofrimento. Mais do que nunca, a advocacia tem de argumentar, usando a dogmática, mas tem também de alargar a dogmática.
O estudo que estou fazendo trata um pouco disso. Um espaço que a advocacia podia até planejadamente se ocupar chama-se júri. A soberania do júri está recebendo golpes do Supremo Tribunal Federal, como sabemos. A soberania do júri é a garantia. Nenhum tribunal togado pode mudar a decisão do júri. Uma vez, pode. Na segunda vez, confirmado, acabou. Está encerrado. No júri você pode, talvez, distender um pouco as categorias dogmáticas. Meu estudo sobre o julgamento de 1950– acho que os colegas vão gostar dele – tem um pouco esse sentido. Acho que está na hora de uma reocupação do júri para, através da soberania do júri, aprimorar, humanizar uma dogmática que abandonou o homem e abandonou a Deus também.
Rafael Fagundes: O que dizer do uso da inteligência artificial nas decisões judiciais?
Nilo Batista: Tenho 81 anos e espero morrer sem ter que me preocupar com isto. Eu sou um analfabeto digital. Inteligência artificial… a natural já não é assim um produto muito presente no ambiente forense, como sabemos. Então, a artificial só vai piorar tudo. Vai mecanizar algo… vai estar copiando o quê? Sinceramente, não quero me preocupar com isso. A hora que me disserem que a inteligência artificial está julgando, aí eu vou me preocupar.
Rafael Fagundes: Professor, a inteligência artificial já está julgando.
Nilo Batista: Então, eu digo que estamos muito próximos do fundo do poço. Muito longe do humanismo com o qual a modernidade abriu suas portas. A porta de despejo da modernidade vai ser uma coisa meio feia, se isso é verdade, se a inteligência artificial está julgando. Se tem um juiz capaz de botar um caso no Chat GPT – e eu nem sei o que significa GPT. Então, se tem um juiz que entrega o caso dele para esse chiqueiro das tolices das redes, sinceramente… Porque inteligência artificial tem que ter um manancial. Quando eu vejo o que é produzido pelas redes, percebo que esse manancial é um chiqueiro de lugares comuns, de impropriedades. Então, prefiro ficar por aqui que eu não entendo isso e não quero entender.
Rafael Fagundes: Recentemente, o senhor escreveu com o nosso sócio Rafael Borges um livro sobre os crimes contra o Estado Democrático de Direito. Vocês são videntes? Imaginavam que o livro teria tanta utilidade e tão rápido?
Nilo Batista: Não imaginávamos. Foi uma ideia do Rafael Borges, que compilou vários textos meus. Foi surpreendente também, eu não sabia que havia escrito tanto sobre o assunto. Ele trabalhou vários textos meus e eu fiz uma parte especial. Como nos pronunciamos sobre o tema, ficamos absolutamente impedidos de atuar profissionalmente em Brasília. Foi uma consequência não procurada do nosso esforço, mas, em todo caso, abençoada.
Rafael Fagundes: Que conselho, que dicas o senhor daria para um jovem advogado da SACERJ que está começando agora, que está no início da carreira, para enfrentar o que vem por aí?
Nilo Batista: Deve se munir de paciência, deve se munir de determinação, porque nesses tempos a advocacia criminal vai ser mais dura do que nos meus tempos. Em algumas varas federais, você encontra um ambiente mais hostil do que encontrava nas auditorias. Já joguei xadrez nas madrugadas dos grandes processos com escrivães da auditoria militar. Na segunda auditoria militar, nós que estávamos lá jogávamos xadrez, passávamos a madrugada assim, em um processo com 30 advogados.
Hoje eu vejo autoritarismo. Passei alguns anos afastado da prática enquanto a tecnologia da comunicação era implantada no Judiciário. Quando sou convocado e aceito exercer umas funções públicas, saio de uma experiência que era ir nos cartórios toda tarde (“como é que está isso aí e tal?), de dar um abraço no juiz, de passar na oitava criminal para encontrar o juiz Eliezer Rosa, com seu bigode entre o branco e o amarelo do cigarro, aquela figura maravilhosa, autor de um Dicionário de Processo Penal, por sua vez inspirado no Dicionário de Direito Penal de João Romero, publicado no início do século XX, por volta de 1903, 1904. Quando eu voltei, a impressão que eu tive era que os atores do Judiciário estavam mais afastados por essas tecnologias do que antes.
Os jovens vão ter uma advocacia muito mais dura, uma prática muito difícil, por causa da “policização”, por causa da mentalidade punitiva que se instalou. Não vai ser nem um pouco fácil.
Rafael Fagundes: Tem volta, professor, essa mentalidade punitiva?
Nilo Batista: Tem. Olha para a Alemanha em 1935 e olha para a Alemanha em 1945. Eles foram derrotados. Vai ter volta. Eu não acredito que o fim da História é a fascistização dos sistemas penais no mundo todo. Eu não acredito.
Rafael Fagundes: Uma coisa meio O Alienista, o último fecha a tranca.
Nilo Batista: Mesmo em O Alienista, ele estava lá, o doutor Simão Bacamarte. Há um momento em que Bacamarte reflete e diz algo como “Mas que grande equívoco. Eu achava que era o destempero, a insegurança, uma coisa multiforme. Não! É o equilíbrio. É a exatidão.” Aí ele tirou todo mundo da Casa Verde e botou os outros. Quem estava dentro, ele tirou e colocou ali quem estava fora. Isso aconteceu em O Alienista. Isso vai acontecer.
Aliás, digo que todo brasileiro tem a obrigação de ler Machado de Assis. Para ajudar a conhecer a sua história. E se é do Rio de Janeiro, realmente não ler é um defeito.
Voltando ao assunto. Não é possível que a ignorância, que a brutalidade, que a insensibilidade, que a astúcia mais vulgar é o que vai prevalecer. Não é possível que vai prevalecer usar, inverter o argumento da soberania para, digamos, tirar do alcance da Constituição a presunção de inocência. Não é possível que isso vai prevalecer muito tempo. Porque tudo isso vai cair. Tudo que um juiz, impedido, suspeito, desonesto julga, acaba. Um dia é feita uma revisão disso. Essa coisa começa. Essa coisa do Judiciário, um certo autoritarismo, quer saber como é que isso começa? O ovo da serpente? Em 1988.
Mais alguma pergunta?
Rafael Fagundes: Não.
Nilo Batista: Então eu vou contar uma historieta. Em 1985, aquela emenda constitucional, a mesma que deu de novo a anistia, muito mais ampla do que havia sido dado pela Lei de 1979, convocou a Assembleia Nacional Constituinte. Eu era presidente da Ordem, nós íamos fazer a Assembleia Geral. Como se chamava? O Grande Encontro? Assembleia? Congresso? O Grande Congresso? Bianual da Sessão Estadual?
Bem, ia ser feita a Constituinte. Eu estava com um grande advogado, civilista, dono de um grande escritório. Não vou dar o nome porque a data revela a idade dele e não sei se ele gostaria. Estava com ele em meados dos anos 80, vinha a Constituinte. Perguntei: E o Supremo? Vai ser colocado em disponibilidade e a Nova República vai nomear 11 juízes? Ele respondeu: “Não!”. Senti até um certo receio quanto à minha sugestão.
E a grande verdade é que os juízes nomeados pelos tiranos prevaleceram e entraram na democracia como se nada tivesse acontecido. Isso não foi o ovo da serpente do Judiciário autoritário? Qual o bom motivo para que um tribunal todo nomeado por ditadores ilegítimos continuasse? Talvez esteja aí o cerne da questão. Nunca tinha pensado nisso, confesso, mas me recordei agora daquela entrevista e deixo para meus colegas da SACERJ pensarem um pouco, se não temos aí um ovinho…
Rafael Fagundes: Em nome da SACERJ, agradecemos a entrevista e esperamos que o senhor ainda tenha muitos anos de advocacia, professor Nilo Batista.
Nilo Batista: Eu é que agradeço aos meus colegas a honra de estar na sessão de entrevista do nosso grande Boletim.